Os morretenses da minha época devem estar lembrados dos conflitos e das disputas com os antoninenses que eclodiam no futebol quando as equipes das duas cidades jogavam. Os juízes de futebol que apitavam as partidas dos times das duas cidades já vinham psicologicamente preparados a deixar o campo às disparadas para não apanhar por marcar faltas sempre tidas como proteção ao time adversário. Os antoninenses eram chamados de pés de anjo porque, diziam, tinham o hábito de usar tênis. Em contrapartida, diziam que os morretenses andavam de tamanco. Antonina tinha porto de mar, as Casas Pernambucanas, uma rádio, mas dependiam de baldeação de trem em Morretes. Os moradores de uma cidade sempre consideravam os da outra como os outros, os diferentes.
Mas o outro nem sempre é o diferente. Quando fui fazer o alistamento para o serviço militar na Base Aérea, avisaram-me que não estavam aceitando soldados de Morretes, de Antonina e de Paranaguá porque eram “puladores” (faltavam ao expediente, saíam escondidos, chegavam atrasados...) e não podiam ficar um final de semana fora do litoral. Para os curitibanos, todos os pirimbus eram iguais; mas as diferencias começavam surgir quando tomavam o misto (o trem da tarde, com vagões de carga e de passageiros) para descer a serra. E ficavam mais evidentes durante as tentativas de conquistar as meninas de Piraquara (por sinal muito bonitas!).
Estas relações conflituosas são rotineiras quando pessoas pertencentes a diferentes grupos (de países, Estados, cidades, times de futebol, escolas de samba, etc.) se encontram. Estas diferenças também aparecem dentro de grupos menores.
Continuando com o exemplo de Morretes, o riozinho (“rio da Fábrica”) que corta a cidade, dividia-a em duas metades, a do Operário e a do Cruzeiro (novamente o futebol!); o lado do Operário era PSD e o do Cruzeiro UDN. O “pedaço” do PTB (que agrupava os ferroviários) era do outro lado dos trilhos da Estrada de Ferro. Esta rivalidade dividia amigos e membros de família: Valdinho e os filhos da Chiquita moravam do lado do Operário, mas eram cruzeiristas; Divar, cruzeirista até hoje, é sobrinho de Valdico (irmão de Chiquita), operarista até a alma que hoje mora “do lado do Cruzeiro”. Corta cabelos na barbearia de Divar. Havia os que mudavam de lado. Nenê Scremin pertencia do lado do Operário, mas começou a jogar no Cruzeiro. Tanto fizeram que o trouxeram de volta. Evaldo Zilli sempre viveu do lado do Cruzeiro, mas foi “levado” para o Operário. Benedito Rolha, seu Roberto Lopes e filhos eram operaristas roxos que moravam do lado do Cruzeiro. Lauro Lopes, filho de seu Roberto, foi jogador do Cruzeiro e depois passou para o Operário. Os que mudavam de time eram trânsfugas para os antigos companheiros e motivos de elogios para os do novo time.
As situações descritas acima indicam que ser igual ou ser diferente é uma questão de situações e de interesses de momento. Em Curitiba (e até pegar o trem), morretenses e antoninenses eram todos iguais (“puladores”, por exemplo); em Morretes eram todos iguais frente aos antoninenses, mas se diferenciavam quando prevaleciam assuntos locais. Entra, aí, o conceito de gente. Gente somos nós; os outros não são gente. O que nos torna gente, então, é sermos iguais. Claro que isto tem gradações. Se estudarmos a história das famílias no Brasil, aprendemos que alguém para ser gente teria que se agregar a uma família, tornando-se “gente da família...” Não se agregando – e, portanto não sendo gente – perdia até o direito à vida. Os grupos tribais sempre se denominam como gente. Se for de outro grupo não será gente. Se trouxermos o ontem para o hoje e o que for indígena para nossa sociedade, podemos citar os exemplos das torcidas uniformizadas em que o simples vestir uma camisa de time adversário será motivo para “deixar de ser gente”.
Nós, de Morretes (nascidos, adotados, etc. pela cidade), somos gente de Morretes. Se assim somos, é porque temos interesses coincidentes, visões de mundo semelhantes (quem vê diferenças entre nós, somos nós mesmos), e, portanto características comportamentais similares. Esta identificação em ser “gente de...” é porque nascemos no seio de um grupo, ou uma comunidade, onde aprendemos a ser um de seus membros. Há, neste lugar geográfico em que nascemos uma população (um ambiente social) e uma paisagem (um ambiente físico, com um tipo de topografia, de solo para agricultura, de comércio, de meios de comunicações, tipos de comida – como o barreado). A interação destes dois elementos proporcionará uma característica especial aos seus moradores, à sua arquitetura, às suas atividades econômicas, um modelo de poder político, etc. Teremos, então, a partir destas características dizer que Morretes é assim e desta forma Antonina é diferente porque existem outras características que colaboraram em sua formação histórica. Apesar de muito próximas. Em outras palavras, em cada uma das cidades existem maneiras de agir, de sentir e de pensar apropriadas.
Estas maneiras de agir, de sentir e de pensar são uma forma simplificada do que os antropólogos chamam de cultura. Existem aquelas maneiras genéricas que chamamos de brasileiras e outras, ainda mais genéricas, que chamamos de ocidentais. Cultura brasileira e cultura ocidental. Se por um lado estas maneiras de agir, de sentir e de pensar podem se tornar cada vez mais genéricas, também podem se tornar mais específicas, podendo chamá-las de subexpressões culturais. O Paraná enquanto sociedade representa uma subexpressão da cultura brasileira, mas também pode ser considerado como uma subexpressão cultural do sul brasileiro. Mas também pode ser classificado segundo diferentes regiões, os chamados Paraná do sul, Paraná do norte, oeste do Paraná, e assim por diante. Qualquer divisão cultural que se queira fazer será válida porque nenhuma das regiões selecionadas é homogênea. Morretes poderá ser classificada como uma destas especializações. E é isto, então, que nos torna “gente de...” Nós fomos “construídos” pelo nosso grupo social e é isto que nos torna pessoas.
Se fomos socialmente “construídos”, esta “construção” obedeceu a um modelo sociocultural, econômico e político de onde fomos criados e educados. Nós, com as nossas idiossincrasias, denunciamos esta nossa socialização (o nome técnico daquilo que dissemos na frase anterior). Nós seremos reconhecidos (identificados) como um participante de determinado grupo. A nossa identidade foi construída desta forma. Só que a nossa identidade tem o sentido de mostrar em que grupo fomos socializado. A identidade de Morretes é a síntese das identidades apresentadas pelos morretenses. Claro que, quando fora de Morretes esta identidade de morretense em Morretes não terá significado porque agora todos são morretenses, e portanto “iguais”.
Falei de cultura enquanto conceito antropológico. O significado é amplo com o sentido de cultivo, seja na agricultura, seja no saber. A pessoa que estudou ou que lê muito, que “sabe das coisas”, é reconhecida como uma pessoa de cultura. Ela cultivou um saber. Um país, uma comunidade, também podem cultivar e conservar o saber de seus membros através de livros, bibliotecas, museus, monumentos, etc. Cada um de nós somos partes da (e de uma) história e o cultivo do saber é a preservação da memória desta história. E assim poderemos saber e dizer o quê e quem somos. Parte de minha história, e, portanto de minha identidade, está em Morretes. Se não preservar a memória desta identidade, perderei as minhas raízes. Podemos – e devemos – dizer o mesmo para com uma comunidade (ou cidade).
Quando passo por São Sebastião sinto uma saudade imensa de minha Morretes; quando vejo fotos de Parati lembro logo de Antonina. Estas cidades, de idades aproximadas, apresentam características semelhantes: as suas casas, as suas ruas e a disposição arquitetônica, seguiram um modelo cultural do momento histórico em que foram construídas. Por trás disto está o saber daquele momento, a disposição segundo as hierarquias social, política e econômica, um momento histórico congelado naquelas obras construídas pelo homem. É desta forma que vemos Morretes. Esta é a sua identidade. (Mauro Cherobim – São Paulo – jul/1997)
(Publicado originalmente em: Morretes como ela mesma. Jornal do Leste. Curitiba: outubro de 1997, p.08 (Opinião))