quinta-feira, 17 de março de 2011

Nós e o fumo

Entre a minha casa e a agora chamada Ponte Velha, a ponte da Vila Santo Antonio, havia uma casa geminada. Na  casa da frente morava Dona Albertina, com duas filhas, Ione, a mais velha e Iole, mas nova e mais velha do que eu.  Dona Albertina era casada com o seu Francisco, conhecido como Pica-pau. O pássaro. Na casa dos fundos morava Dona Albertina, casada com o seu Artur, chefe dos guarda-linhas dos correios e telégrafos. Guarda-linha era aquele funcionário eu percorria as linhas telegráficas dos correios. Dona Albertina, a xará da primeira (elas nao se davam) tinha um casal de filhos que morava com ela. Nardinho, da minha idade e uma filha, já adulta, que enrolava cigarro de palha e vendia em maços de vinte cigarros.

Nardinho ajudava a irmã na fabricação de cigarros e "desviava" um maço para fumarmos no porão dos fundos de casa da minha casa. Isabel, a “secretária” de minha mãe, um dia nos viu fumando.

- Mas estes meninos fumando!...   Vou falar pra Dona Dulce.

Éramos piazitos, no máximo com 10 anos de idade. Tivemos que comprar o silêncio de Isabel. Tivemos que repartir o maço em três.

Um dia papai descobriu. Não sei como. Mas não falou nada para mamãe.  Aplicou uma chantagem irresistível: Se você fumar o pai vai para a guerra. Todos aqueles que estão lá são pais que têm filhos que fumam.

A chantagem funcionou; meu pai foi o melhor amigo que já tive. Era aquele bronqueiro, cheio de palavrões que aprendeu com nonno, mas os olhos marejavam facilmente.

Nonna fumava cigarros de palha. Tinha até uma guilhotina de picar fumo. Nonno não fumava e nonna não fumava na frente dele. Tio Tonicão fumava cigarros iguais aos da mãe (nonna) e tinha hábitos parecidos com os dela, como o de esvaziar os colchões. Os colchões eram um saco cheio palha de milho e era de onde tiravam a palha para fazer os cigarros.

Nonna e Tio Tonicão me ensinaram a picar o fumo, enrolar a palha, mas eu não fumava. Vai que inventassem uma nova guerra!...

A sociedade nos impõe vícios. Fumar era uma forma de mostrar macheza. Hoje em dia quem não bebe é out. Out era quem não fumava. Fumar era assim. E fumei até há uns vinte e cinco anos.

E hoje aqui estou com uma gripe forte e o resultado do raios-X indicou uma mancha que poderia ser enfisema pulmonar ou uma pneumonia. Boa notícia: era pneumonia. Notícia pouco melhor: não era pneumonia, mas uma inflamação. Mas com acompanhamento as expectativas são positivas.

Não fosse o fumo, não estaria aqui. Quem hoje fuma deve pensar no futuro. Morrer, morre-se de qualquer forma, mas morrer com qualidade de vida é muito melhor do que anteceder a morte com todos aqueles sofrimentos que os males pulmonares causados pelo fumo provocam.

O corpo somos nós. Ele é a nossa vida. E nós o maltratamos ao para nos mostrarmos socialmente com bebidas, fumos, drogas. Todos queremos ser in. Mas não nos maltratamos somente por isto; nós nos maltratamos por questões morais, religiosos, estéticos, etc.

E o fumo permeia tudo isto.

O jacu do seu Sinibaldo

O jacu é uma ave de veneta. Diria, hoje, uma ave com bipolaridade, pois o seu humor varia entre uma mansidão extrema e uma ferocidade terrível. E parece ter memória excepcional, pois reconhece todas aquelas pessoas de quem não gosta e faz chamegos com aquelas pessoas que gosta. Esta variação de humor poderá até nos levar pensar que jacu também é gente, como se ouvia falar de um antigo ministro collorido a respeito de seu cãozinho. Dizia-se ser fofoca da oposição e aqui não vou além da figura de retórica.

É muito perigoso para um ádvena querer entrar em grupos de fofoca em Morretes em face de rede de parentela. Seu Sinibaldo era nosso vizinho. Era um dos membros da colônia Nova Itália, casado com  irmão de um tio e o seu sogro era irmão do marido de uma minha tia avó. Era tio primos meus e mais tarde se tornou co-sogro do meu tio, seu cunhado. E eu me tornei primo por afinidade do seu filho caçula. E dois irmãos do Seu Sinibaldo casaram com duas irmãs, filhas da minha tia avó, primas da sua esposa.

Uma rede muito imbricada. Ah, não entenderam! Hoje estou meio atrapalhado. Pudera, estou num quarto de hospital tentando curar os pulmões estuporados por tabagismos ativos e passivos. Mas eu estou eufórico, pois o médico acabou de me falar que com um controle irei longe. Quando eu fico eufórico acho de contar causos de Morretes, mas a euforia também nos deixa meio atrapalhado.

Quando falamos em algo imbricado usamos como analogia a disposição das telhas num telhado. Se mexer numa telha, três ou quatro outras saem do lugar. Se fofocar um morretense estaremos envolvendo três ou quatro outros na fofoca.

Alceu Maynard de Araújo foi meu professor e depois colega de docência. Ele tinha um artigo a respeito de uma pesquisa realizada em Alagoas me que falava da D.I.V.A. (Departamento de Investigação da Vida Alheia). A D.I.V.A. que ele descrevia reunia-se numa farmácia e eu me lembrava da farmácia do Roberto França, casado com a  ilha da minha tia avó que  me referi acima. Os chefes da D.I.V.A. eram o Cilo, filho do Roberto, Seu Piero e Seu Leopoldo Vizini. Mas havia outras D.I.V.A.s em Morretes. A barbearia do Valdico era uma delas. Uma D.I.V.A. enxuta era na alfataria do Honilson Madaloso. Era a rodada da chimarrão que Honilson preparava  na reunião com seu Arlindo de Castro, seu João Cebola e seu Tone Gonçalves. Eu era um guri, mas chegava mais cedo para preparar o chimarrão, deixar a água bem chiadinha, para poder ser aceito na rodada.

Não dá para contar os causos desta rodava pois correrei o perigo de não poder mais aparecer em Morretes, Apesar de eu ser o único sobrevivente do grupo.

Em Humaitá, Amazonas, eu participava da D.I.V.A. local nas escadas do porto fluvial. Salu, então Prefeito, Israel, farmacêutico e presidente da Câmara, Venturinha que preparava o café. E eu, que entrei ao grupo a convite do Salu. Funcionários da Prefeitura, barqueiros, beiradeiros, pescadores, etc., todos iam contar as boas novas da cidade. Os evangelistas e Humaitá.

Mas a minha euforia pulmonar me fez lembrar do jacu do seu Sinibaldo. Era um homem à frente e acima da média dos seus contemporâneos. Era escritor e poeta. Espírita. O galinheiro era uma mansão galinácia. Tinha um “navio” ancorado no rio (Nhundiaquara). Na verdade uma barcaça que não podia fazer grande coisa pois não passava  na corredeiras (apelidadas de cachoeiras do rio). E entre tantas outras coisas, tinha um jacu.

Eu e as minhas irmãs e eu éramos pequenos. Como todas as crianças fazíamos algumas brincadeiras típicas da idade. Uma  vez comemos um cacho de banana outro. Comíamos apertando a casca, deixando-a oca. Quando demos pela coisa havíamos comido todo o cacho. Não sei quem teve a idéia, acho que a minha irmã, logo após a mim, de encher as bananas de terra e deixar do quintal do seu Sinibaldo. Deixamos arrumadinhas, pois era muita banana para pouco espaço.

Quando dona Italinha viu aquilo ficou apavorada. Achou que a feitiçaria contra ela.  Ela e minha mãe eram  muito amigas e ficou na frente da casa até a minha mãe chegar da escola (era professora): Dulce, fizeram um feitiço contra mim, ajude-me a rezar terço... e as duas desfiaram mil rezas até dona Italinha se acalmar.

Minha mãe deve ter desconfiado daquele feitiço pois havia nos proibido de comer aquela banana, para amadurecer um pouco mais. Min há mãe achou de deixar pelas rezas e esquecer o caso.

Nosso divertimento era enfezar o jacu. Fazíamos isto porque ele dava mostras de ser nosso amigo. Mas era diferente com o seu Camilo e com o seu De Rocco.

Seu Camilo, homem quieto e de boa paz tomava conta da sorveteria e da torrefação de café no Seu Nhozinho. Seu De Rocco, lavrador do Capituva e rezador de boa voz nas missas de domingo e nas missas solenes. Era bem falado na cidade e tentavam imitá-lo quando respondia o Dominus Vobicus no meio da missa: Et cum spiritu tuu. A solenidade da missa ia aos extremos quando De Rocco fazia  dupla com Sebastião Cavagnolli. A voz da dupla valia pela missa. 

A cidade toda tinha o maior respeito para com o seu De Rocco, menos o jacu do seu Sinibaldo. Nós, piazitos na mais tenra idade, eramos quem socorria o seu Camilo e o seu De Rocco dos ataques do jacu.

Morretes, desta época, era pavimentada com conchinhas do mar. Depois fomos saber que estas conchinhas eram sambaquis, local de sepultamento dos antigos índios da costa brasileira. Com a proibição do uso “das conchinhas” a prefeitura resolveu pavimentar as ruas com paralepípedo, mas antes de fazer isto estendeu a rede de água e de esgoto. A nossa brincadeira era correr por aquelas valetas de cerca dois metros de profundidade por menos de um metro de largura.

Jazar era o responsável dos trabalhos de instalação da rede de água e de esgotos. Moço forte, recém chegado de Piraquara, ao invés de se restringir ao trabalho de feitor era o primeiro a pegar a picareta para abrir as valetas.

Antes da instalação da rede de água e de esgotos as casas construíram as suas “casinhas” em cima de um buraco chamado de “fossa negra”. Era um perigo ser ferroado  por uma mosca varejeira quando se praticava o sagrado momento filosófico.

O meu pai construiu não uma casinha, mas um WC, com um vaso de louça como os atuais,  com um encanamento pra despejar os dejetos no meio do rio. Ah, se os ambientalistas de hoje vivessem naquele momento!

Era uma privada moderna, só que a descarga era feita jogando água com balde. Na nossa cabeça infantil não entendia como é que jogava toda a água e ainda ficava água dentro da bacia. Papei dizia que era assim mesmo, mas para nós, crianças, havia algo errado.

Seu Sinibaldo, o dono do Jacu, inovou ao colocar a privada dentro de casa. Não tinha os nossos inconvenientes de ter que sair nos dias de frios, de chuvas, à noite.

Vovô, pai de mamãe (meus avós maternos eram chamados de vovô e vovó e os paternos eram chamados de nonno e nonna), adorava a nossa privada. Uma privada no mundo das casinhas.

Os senhores de então usavam uma calça com a cintura mais alta. Apesar  de haver as passadeiras para passar o cinto, costumava-se passar o cinco  por fora e mais abaixo. Quando se ia fazer as  necessidades fisiológicas desafivelava o cinco e passava no pescoço. Havia até piadas neste sentido.

- Eu vi fulano no mato com o cinto no pescoço.

- Meu Deus, ele se suicidou?

- Não, estava cagando.

Vovô tinha este hábito. Como ele gostava tanto da nossa privada, saía feliz com o corpo aliviado e com cinto em volta do pescoço. E assoviando. E o meu avô era a terceira pessoa a que o jacu tinha marcação.

O jacu não gostava do meu avô e odiava o seu assovio. Mas nunca o atacara. Até que, um dia, o jacu estava num daqueles dias (se fosse jacu fêmea diria estar de TPM), pulou em cima do meu avô. Puxou o cinto para se defender pelo lado oposto da fivela, bateu na sua cabeça provocando um “galo” (calombo resultado de uma batida). Ao fugir do jacu enroscou a sua cabeça no varal de roupas.

O meu avô ficou inconformado com o ataque. Era um homem bem articulado, escrevia poesias comestrofes decassílabas, camonianas, refertas (abundante, cheia) de beleza estética, com predominância da personificação ou prosopopéia[1]”. Os seus discursos lidos em solenidades. Atacado por um jacu. Este ataque foi tema de discussões que duraram alguns meses.

Seu Sinibaldo ficou muito envergonhado com o que aconteceu e se desfez do jacu. Mas o meu avô não esqueceu do ataque que sofreu.



[1] Beto Cardoso, poeta morretense, foi quem definiu as poesias de vovô como camonianas. As poesias de Beto também eram camonianas e tinha Morretes como tema. As de vovô tinham um estilo biográfico. Os versos de Castro Alves eram  camonianos. Ver http://www.revista.agulha.nom.br/@fma16.html.