Certa noite o meu pai me acordou e falou: a cegonha está
para chegar e ela não gosta de crianças por perto. Fique no caminhão e cuide da sua irmã. Que
cegonha chata! E onde já se viu, não gostar de crianças, se ela era a
transportadora de crianças.
Esquisito! O pai sabia das
coisas. Fazendo as contas, eu tinha 4 anos e sete meses e a minha irmã, sob a
minha tutela, 2 anos e quatro meses.
Era um caminhão marca International e tinha rádio. Meu pai
ligou o rádio e eu até me esqueci da cegonha, pois comecei a procurar onde
estavam aqueles homens e mulheres que estavam falando. Deveriam ser muito
pequenos para caber naquela caixinha tão pequena. E falavam alto! Minha irmã,
muito viva para os seus dois anos, também ficou curiosa. Procura daqui, procura
dali, e nada de encontrar aquele pessoal que não parava de falar.
Quando me lembrava da visita da cegonha ia até a porta
entreaberta da garagem e dava uma olha. Nada da cegonha e também não ouvia nada
de conversa em casa. Mas vi dona Margarida chegar. Ela era a primeira madrinha
de quase todas as crianças de Morretes. Talvez imaginasse que ela fosse uma espécie
de agente da cegonha, pois já haviam me dito que o meu pai foi buscar dona
Margarida quando nasci. Nonno tinha uma eguinha que ganhava todas as corridas
nas raias de Morretes e era uma boa troteadora
na aranha (uma charrete com rodas de madeira e aro de ferro). Quando papai foi
avisado que a cegonha estava para chegar deixou a eguinha preparada para ir até
a cidade (eu nasci no Central, a uns 3 ou 4 quilômetros da cidade).
Eu não me lembro quando Marisa nasceu, mas o ritual deve ter
sido o mesmo.
Foi uma noite trabalhosa e sem resultados: não encontrei
aquele pessoal que tanto falava no caminhão e nada de ver a cegonha. Até que
papai chegou. Minha irmã já havia dormido e papai me falou que a cegonha havia
chegado silenciosamente e deixado mais uma irmãzinha. E nos levou dormir.
Deixamos para ver a irmãzinha no dia seguinte, pois ela já estava dormindo.
Passados dois anos e meio cheguei em casa e me avisaram que
a cegonha havia chegado e deixado uma irmã. Fiquei chateado, pois pela segunda
vez esta cegonha chega em casa, deixa outra irmã, e nada de eu me encontrar com
ela. Deveria haver algum acordo da cegonha, ou do dono do cegonhal, com a dona
Margarida, pois quando alguém recebia a visita da cegonha, lá estava ela, Dona
Margarida. Como eu já desconfiava, como comentei acima.
Este negócio da cegonha me deixava ensimesmado. Eu não
conseguia entender onde ia parar a barriga da mulher que recebia a cegonha.
Estava barriguda e logo após sem a barriga. Falavam uma porção de coisas, mas
nada daquilo me convencia. Para me convencer teria que ver a cegonha.
Até que uma vez cheguei na oficina em que papai, Giocondo e
Joaquinzinho consertavam os carros, num
barracão cedido por tio João Sotta, escutei um papo que me deixou
atrapalhado de vez. Falavam a respeito de um rapaz havia “comido” uma moça e
ela estava esperando a cegonha. E
aprendi outra palavra: prenha. “A moça ficou prenha!”. Comido? Como? Quando
pedi explicações levei um fora, que aquilo não era conversa para criança.
Eu e Marisa costumávamos estudar pela manhã e minha mãe
lecionava à tarde. Eram momentos agradáveis de “pesquisa”, isto é, mexer nos
espaços proibidos. Uma vez encontramos um revolver de meu pai e corremos atrás
de Isabel. Ela se assustou, saiu correndo para a rua e nós atrás avisando para
não se assustar, mas ela não nos escutava de tão apavorada. Encontrávamos
muitas coisas interessantes. Os pais sempre têm coisas interessantes que
escondem dos filhos.
Como sabemos, não existia e ainda não existe educação
sexual. Quando se fala do assunto é por metáforas e as crianças não entendem
nada. Inclusive os professores.
Na década de setenta um grupo de alunos me mostrou,
orgulhoso, um trabalho sobre educação sexual, que falava de gestação. Aparecia
o galo “cobrindo” a galinha, o porco com a porca, o boi com a vaca, o cão com a
cadela, o cavalo com a égua e, por fim, o homem e a mulher... deitados na cama,
cobertos lado a lado, de barriga para cima. Imagine na década de 40.
Numa das pesquisas vespertinas encontrei um livro de
sexualidade, talvez escrito na década de trinta ou na de quarenta. Era bem
ilustrado e mostrava, em detalhes, o processo de gestação. Chamei Marisa para
ela ver que não havia nada de cegonha. Quando a minha mãe chegou da escola
cobrei uma explicação. O livro sumiu.
E foi assim que descobri que a história da cegonha era uma
estória.