Eu estava no ginásio e o meu pai conseguiu com o seu Marquinho De Bona para que eu
estagiasse no escritório do Marquinho Malucelli (havia vários Marcos e
Marquinhos em Morretes!). Marcos De Bona era o chefe do escritório era um
homens de mil atividades, dentre ela Presidente do Clube Sete de Setembro e
agente de uma companhia de
capitalização, Bahia Capitalizações. Nos horas de folga (se havia) era
correspondente do jornal O Dia em Morretes e era chamado para fazer discursos.
A sua filha Lígia publicou um livro com a coletânea de parte dos seus discursos,
com um título sugestivo Tenho dito....
Lá no escritório trabalhavam, pela ordem hierárquica, Darcy,
Lívio e João Veloso, três antoninenses importados para jogar no time Operário
Futebol Clube. E também trabalhava Odith Salomão, minha amiga desde o início do
curso primário. E eu estagiário.
Para ganhar alguns trocados seu Marquinho pedia que eu auxiliasse no Sete para servir as mesas.
Eu não tinha muito jeito para este trabalho; o que eu gostava era cobrar as
mensalidades da Bahia Capitalização e todos os cantos do município, menos na
área central da cidade, obrigação de Odith.
O único local da cidade que eu cobrava era na casa da Olga, a zona de Morretes. Dona Olga era uma mulher de respeito. Todos
respeitavam. Ela deveria saber muitos segredos dos cavalheiros nativos e
visitantes.
Casa da
Olga
era a referência politicamente correta. Mas a referência corrente era de zona ou puteiro. Diferente da Casa de
Eni de Bauru, o puteiro mais
famoso e prestigiado do Estado de São Paulo. “Para a população local, Eny possuía um lado demoníaco e outro angelical.
Financiou diversas obras de caridade e encontrou famílias para crianças
abandonadas”[1]. As
más línguas diziam que ela produzia
mulheres para o seu negócio, mas não. Recentemente foi publicado um livro
biográfico de Eni, escrito por um jornalista de Bauru[2].
As cafetinas – e as prostitutas - costumam ser pessoas
respeitadas e ao mesmo tempo desprestigiada, como o autor relata a respeito de Eny
Cezarino. Em Aragarças havia Joana Boa, tratada como Tia Joana, pelos fabianos
(militares da FAB). Quando foram construídos os aeroportos do Cachimbo e de
Jacareacanga, o então Major Veloso, que ficou conhecido por liderar a Rebelião
de Jacareacanga, contratava Joana Boa para periodicamente arregimentar
prostitutas para os trabalhadores dos aeroportos em construção. Estes
trabalhadores ficavam isolados por um largo tempo e as prostitutas aliviavam as
tensões.
Conheci Joana Boa em 1959. Residia em Goiânia no bairro do
Botafogo e tratava os sargentos de pouca idade, longe das suas famílias como se
fossem seus filhos. Ela já era uma ex-cafetina. Um dos livros de Mário Vargas
Llosa, Pantaleão e as visitadoras,
lembra, em alguns aspectos, a relação de agenciamento entre Veloso e Joana Boa.
Somos herdeiros, nas culturas ocidentais, de uma misoginia
que nos remete às eras pré-cristãs colocando as mulheres numa posição
subalterna aos homens. As prostitutas têm algo de Lilith, a primeira Eva,
portadora da uma face demoníaca e de outra angelical, mas sem o caráter
subserviente e “erradiço[3]” em
relação segunda Eva. Esta Eva foi feita da costela do homem para servir a ele.
Como a costela é curva ela nunca ficará ereta como o homem e por isto deverá
ficar sempre sob a sua proteção.
A prostituta tem um caráter de Lilith no imaginário das
pessoas e as mulheres “honestas” da segunda Eva. Sempre sob a ameaça de ser
iludida por alguma serpente. O homem quando ingressa num bordel entra num mundo
diferente, fonte de muitas crenças e preocupações que colocam em perigo a sua
masculinidade, poderosa, no mundo fora dos bordeis.
Nesta época, início da década de 50 do século passado, Tio
João Fante e tia Regina Fante, dois irmãos, ele solteiro e ela viúva, moravam
na reta do Porto. Eles eram meus tios avós. Os sobrinhos netos são tratados
como netos. Era assim com tio João e tia
Regina.
A casa da Olga
ficava no começo da reta do Porto[4] junto ao
trilho da linha ferroviárias do ramal Morretes-Antonina. A casa era cerca por algumas
árvores e arbustos menores que a deixava escondida para quem passava pelo
caminho ao lado dos trilhos e pela estrada. Mas havia alguns caminhos e um
deles dava acesso à reta do Porto.
Numa das minhas idas à casa
da Olga fiz a cobrança e saí na reta no exato momento em que tio João Fante
passava. Ele se assustou a me ver saindo por aquele caminho e me perguntou de
onde eu vinha. Ele sabia, pois quem saía por ali só podia ter vindo da casa da Olga. A preocupação dele era
grande. E me contou a história da Rosa Homem.
Rosa era mulher até a meia noite. Quando o relógio batia a
ultima badalada ela virava homem. E o homem que estivesse com ela, teria que
“virar” mulher, ou fugir pulando a janela. Aquele caminho que ele me viu sair
era a rota de fuga dos que conseguiam fugir.
Todo guri é curioso e quis saber se ele, alguma vez teve que
fugir da Rosa Homem e pulado a janela. Ele me disse que não. Não foi do tempo
dele, mas os amigos falavam dos que tiveram que fugir.
[3]
É um neologismo, pois não encontrei uma palavra para definir a oposição às
expectativas de virtudes atribuídas à segunda Eva. Antes do episódio da maçã. O
mito de Lilith voltou a ser contado pelos rabinos da Idade Média. Contavam
estes mitos que Lilith não concordava em ter relações sexuais de forma
subalternas sob Adão, mas não era satisfeita porque não era considerado certo
Adão ficar sob ela. A posição que chegou até hoje conhecida como “posição do
missionário”, também chamada de “papai-e-mamãe”. Ela reclamava, pois não
entendia porque, se ela foi feita de barro como Adão tinha que ter uma posição
subalterna. Por não ser atendida, abandonou Adão e foi embora. Adão ficou muito
triste e pediu ao Senhor que a convencesse voltar. O Senhor enviou dois
arcanjos à procura; depois de muito procurar Lilith foi encontrada. Os arcanjos
deram o recado, talvez de forma não tão diplomática. Lilith ficou muito zangada
e mandou os arcanjos embora. Em resposta o Senhor deu-lhe um castigo: seus
primeiros cem descendentes morreriam. E Lilith foi transformada, segundo estes mito, num súcubo, demônio de forma feminina, que
perseguia os homens até ter relações sexuais com eles, enquanto dormiam, geralmente
homens solitários, até consumir toda a sua energia vital. A forma masculina do
súcubo é o íncubo.
[4]
Estrada que liga Morretes ao distrito do Porto de Cima.