Na metade de 2003 recebi um recado que me alegrou muito. Era
de Roselis Latuf avisando-me que estava organizando um almoço comemorativo aos
cinqüenta anos da nossa formatura ginásio. Já chegamos ao nosso quarto almoço. É
um momento em que nos desligamos da Morretes de hoje. Também do mundo de hoje. Passamos
a relembrar o mundo daquele tempo. De muitas
coisas guardadas nas sombras da memória. Um lembra um pedaço, outro mais um
pedaço e logo a imagem da memória fica completa. E podemos comparar a vida de
Morretes de então e a Morretes de hoje.
Eu e Osvaldo Colodel (Valdinho) somos amigos desde o jardim
de infância e por isto temos muitas histórias em comum para recordar. Num
intervalo de aula, no ginásio, Valdinho estava sentado na carteira e eu dei uma
chave de braço fazendo-o quebrar a vidraça com os pés. Foi vidro por todo o
lado. Dona Rosinha, a zeladora, correu ver o barulho e avisou: dêem um jeito
nisto antes que o Dr. Melo saiba. Dr. Melo era o diretor do ginásio.
Depois do almoço Valdinho foi a minha casa me chamar para
consertar o estrago. Tínhamos que fazer alguma coisa, pois ele era vizinho do
Dr. Melo e eu tinha a minha mãe, professora e muito severa. Era complicado ser
filho de professora; teria que ser o exemplo[1].
Mas consertar como se nenhum de nós tinha algum centavo? Ele deu a idéia de
vender garrafas e jornais velhos para conseguir dinheiro.
Com um monte de jornais fomos ao negócio do Marquinho (que
se transformou, bem mais tarde, no Malucelli da Visconde). Quem comprava era o
Máximo Salomão, ou um dos Joanitos, o Malucelli ou o Airosa. Olhavam bem a boca
da garrafa para ver se não estava quebrada, em condições de ser fechada com a
chapinha, ou champinha no nosso
linguajar. Procurávamos o Tonico Nhão
para pesar os jornais, ele não reparava, ou fazia que não via, a nossa ajudinha
com a ponta dos dedos para tornar os jornais mais pesados.
Feita a venda, conseguimos algum dinheiro e fomos á oficina
seu Euclides de Freitas para nos ajudar. Era um marceneiro de primeira. Fazia
de tudo. Arrumava de tudo que fosse de madeira. Era quem melhor conhecia os
segredos de fazer um bom caixão de defunto. Era o entendido das cores do caixão
segundo o sexo e a idade do(a) finado(a). Entendia de cores de caixão mais que
o Padre Camargo, pois ele costumava perguntar a nós, sacristãos (depois
chamados de coroinhas, com a globalização). Como éramos nativos, dávamos a informação correta. E tínhamos que saber para
dar o toque de sino certo. O toque era unisex.
Claro, até recentemente as almas e os anjos não tinham sexo!
Não bastasse, seu Euclides era músico da Euterpina. Era um
conjunto musical que também era banda, orquestra e tudo o que lhe coubesse
fazer. Seu Euclides tocava tuba. Ele contou, certa vez, que não havia jeito de
sair som da tuba. Alguém, por malvadeza, jogou um pão de sanduíche dentro da
tuba; com a saliva o pão inchou e entupiu a passagem do som.
Além de todas estas suas habilidades profissionais e de
pessoa excepcional, era um bom professor de marcenaria e um consultor
financeiro. Chegamos lá e contamos o nosso problema. Para que serviriam os nossos
parcos cruzeiros? Seu Euclides nos emprestou as ferramentas necessárias e nos
mandou limpar e medir o local do vidro e medir com cuidado.
O ginásio funcionava somente pela manhã. Tivemos que
procurar a dona Rosinha para abrir a porta para permitir a nossa entrada no recendo
do ginásio.
Dona Rosinha, esposa do seu Manequinho Goiabeira, oficial de
justiça, filha de dona Isaura, irmã do Carlito Butiá e mãe do Josué. E mais que
tudo isto, uma amiga dos alunos. Fizemos um serviço
de profissional.
Ainda deu tempo para ir ao matadouro ver o seu Felix matar
boi. Seu Felix era o herói da gurizada, fazia do mesmo jeito que faziam os cowboys dos seriados que passavam depois
dos filmes no cinema do seu Nhozinho. Mas perdi o chimarrão das três na
alfaiataria do Honilson Madalozo.
Mas ainda havia uma preocupação, a preocupação do dia
seguinte: enfrentar o Dr. Melo.
Todos os alunos entravam em forma antes de as aulas
começarem. As meninas na frente e os meninos atrás. E por altura, dos mais
baixos aos mais altos. Cada um sabia o seu lugar. Cantávamos o hino Nacional,
algumas vezes, o hino do Paraná ou o de Morretes outras vezes. E era o momento
em que o diretor se dirigia a todos os alunos.
O dia seguinte, para mim e para Valdinho seria a hora da
onça beber água. Estávamos contando com uma suspensão. Ninguém ainda havia
quebrado vidro de uma janela do ginásio. Iriam dizer: o filho de Dona Dulce?
Filho de professora tinha que ser santo. Tão santo que Dom Ático Eusébio da
Rocha, arcebispo de Curitiba queria que eu fosse para o Seminário! Hoje eu
seria um santo homem, preocupado com as coisas divinas. Logo os dois
sacristãos, comentariam; a gente até encomendava
almas nos enterros quando o Padre estava almoçando!
Doutor Melo começou o seu discurso dizendo que no dia anterior
havia acontecido uma coisa muito feia... suspensos por suspensos, interrompemos
o seu discurso e mostramos a janela consertada. Ele olhou para a janela e
continuou: “e como estava falando e como a coisa feia foi consertada...”.
Ficamos livres de uma suspensão.
Assim eram os alunos do antigo Ginásio Estadual “Rocha Pombo”.
[1]
- Depois de velho descobri que eu não fui exemplo como imaginava. Izaltino me
denunciou. http://mergulhandonavirtualidade.blogspot.com.br/2013/11/carta-aberta.html