sexta-feira, 22 de maio de 2015

A vidraça do ginásio

Na metade de 2003 recebi um recado que me alegrou muito. Era de Roselis Latuf avisando-me que estava organizando um almoço comemorativo aos cinqüenta anos da nossa formatura ginásio. Já chegamos ao nosso quarto almoço. É um momento em que nos desligamos da Morretes de hoje. Também do mundo de hoje. Passamos a relembrar o mundo daquele tempo.  De muitas coisas guardadas nas sombras da memória. Um lembra um pedaço, outro mais um pedaço e logo a imagem da memória fica completa. E podemos comparar a vida de Morretes de então e a Morretes de hoje.

Eu e Osvaldo Colodel (Valdinho) somos amigos desde o jardim de infância e por isto temos muitas histórias em comum para recordar. Num intervalo de aula, no ginásio, Valdinho estava sentado na carteira e eu dei uma chave de braço fazendo-o quebrar a vidraça com os pés. Foi vidro por todo o lado. Dona Rosinha, a zeladora, correu ver o barulho e avisou: dêem um jeito nisto antes que o Dr. Melo saiba. Dr. Melo era o diretor do ginásio.

Depois do almoço Valdinho foi a minha casa me chamar para consertar o estrago. Tínhamos que fazer alguma coisa, pois ele era vizinho do Dr. Melo e eu tinha a minha mãe, professora e muito severa. Era complicado ser filho de professora; teria que ser o exemplo[1]. Mas consertar como se nenhum de nós tinha algum centavo? Ele deu a idéia de vender garrafas e jornais velhos para conseguir dinheiro.

Com um monte de jornais fomos ao negócio do Marquinho (que se transformou, bem mais tarde, no Malucelli da Visconde). Quem comprava era o Máximo Salomão, ou um dos Joanitos, o Malucelli ou o Airosa. Olhavam bem a boca da garrafa para ver se não estava quebrada, em condições de ser fechada com a chapinha, ou champinha no nosso linguajar. Procurávamos o Tonico Nhão para pesar os jornais, ele não reparava, ou fazia que não via, a nossa ajudinha com a ponta dos dedos para tornar os jornais mais pesados.

Feita a venda, conseguimos algum dinheiro e fomos á oficina seu Euclides de Freitas para nos ajudar. Era um marceneiro de primeira. Fazia de tudo. Arrumava de tudo que fosse de madeira. Era quem melhor conhecia os segredos de fazer um bom caixão de defunto. Era o entendido das cores do caixão segundo o sexo e a idade do(a) finado(a). Entendia de cores de caixão mais que o Padre Camargo, pois ele costumava perguntar a nós, sacristãos (depois chamados de coroinhas, com a globalização). Como éramos nativos, dávamos a informação correta. E tínhamos que saber para dar o toque de sino certo. O toque era unisex. Claro, até recentemente as almas e os anjos não tinham sexo!

Não bastasse, seu Euclides era músico da Euterpina. Era um conjunto musical que também era banda, orquestra e tudo o que lhe coubesse fazer. Seu Euclides tocava tuba. Ele contou, certa vez, que não havia jeito de sair som da tuba. Alguém, por malvadeza, jogou um pão de sanduíche dentro da tuba; com a saliva o pão inchou e entupiu a passagem do som.

Além de todas estas suas habilidades profissionais e de pessoa excepcional, era um bom professor de marcenaria e um consultor financeiro. Chegamos lá e contamos o nosso problema. Para que serviriam os nossos parcos cruzeiros? Seu Euclides nos emprestou as ferramentas necessárias e nos mandou limpar e medir o local do vidro e medir com cuidado.

O ginásio funcionava somente pela manhã. Tivemos que procurar a dona Rosinha para abrir a porta para permitir a nossa entrada no recendo do ginásio.

Dona Rosinha, esposa do seu Manequinho Goiabeira, oficial de justiça, filha de dona Isaura, irmã do Carlito Butiá e mãe do Josué. E mais que tudo isto, uma amiga dos alunos. Fizemos um serviço de profissional.

Ainda deu tempo para ir ao matadouro ver o seu Felix matar boi. Seu Felix era o herói da gurizada, fazia do mesmo jeito que faziam os cowboys dos seriados que passavam depois dos filmes no cinema do seu Nhozinho. Mas perdi o chimarrão das três na alfaiataria do Honilson Madalozo.

Mas ainda havia uma preocupação, a preocupação do dia seguinte: enfrentar o Dr. Melo.

Todos os alunos entravam em forma antes de as aulas começarem. As meninas na frente e os meninos atrás. E por altura, dos mais baixos aos mais altos. Cada um sabia o seu lugar. Cantávamos o hino Nacional, algumas vezes, o hino do Paraná ou o de Morretes outras vezes. E era o momento em que o diretor se dirigia a todos os alunos.

O dia seguinte, para mim e para Valdinho seria a hora da onça beber água. Estávamos contando com uma suspensão. Ninguém ainda havia quebrado vidro de uma janela do ginásio. Iriam dizer: o filho de Dona Dulce? Filho de professora tinha que ser santo. Tão santo que Dom Ático Eusébio da Rocha, arcebispo de Curitiba queria que eu fosse para o Seminário! Hoje eu seria um santo homem, preocupado com as coisas divinas. Logo os dois sacristãos, comentariam; a gente até encomendava almas nos enterros quando o Padre estava almoçando!

Doutor Melo começou o seu discurso dizendo que no dia anterior havia acontecido uma coisa muito feia... suspensos por suspensos, interrompemos o seu discurso e mostramos a janela consertada. Ele olhou para a janela e continuou: “e como estava falando e como a coisa feia foi consertada...”. Ficamos livres de uma suspensão.

Assim eram os alunos do antigo Ginásio Estadual “Rocha Pombo”.



[1] - Depois de velho descobri que eu não fui exemplo como imaginava. Izaltino me denunciou. http://mergulhandonavirtualidade.blogspot.com.br/2013/11/carta-aberta.html

sábado, 9 de maio de 2015

Há 30 anos, em Morretes...

Odith Salomão foi minha colega durante uma parte, ou todo, do curso primário. Lembro-me claramente, talvez por estarmos entrando na adolescência. Fizemos o quinto ano juntos. Os alunos que faziam o quinto ano eram aqueles considerados os mais fracos, que não poderiam “dar no coro” no ginásio. O ginásio começou a funcionar. Colegas nossos do quarto ano, considerados os melhores alunos fizeram admissão para constituir a primeira turma. Eu, Odith, Valdinho, Aydée, Leonice e mais alguns que de momento não me lembro, não pudemos participar da primeira turma.

O ginásio não era público. Não sei qual fora a sua constituição legal, o que sei é que os alunos pagavam mensalidades. No final do quinto ano nos preparamos para o concurso de admissão. O primeiro colocado seria agraciado com uma bolsa de um ano, o segundo com seis meses e o terceiro com três meses. Carlota Freitas, uma guria muito estudiosa, séria... Morava com o irmão e tinha duas sobrinhas mais ou menos com a mesma idade dela, Eli e Eni. Se eu estiver enganado com os nomes peço que se eu tiver algum leitor do meu tempo faça a correção. A família mudou de Morretes e muitos corações adolescentes ficaram entristecidos.

Carlota e Odith não chegaram a completar o primeiro ano. Carlota porque se mudou para outra cidade e Odith para trabalhar. E eu não cheguei a pagar mensalidade, pois antes do terceiro mês o ginásio foi estadualizado.

Papai sugeriu que eu deveria aprender uma profissão. Conversou com Seu Marquinho De Bona para ser estagiário no escritório do Marquinho Malucelli. Darcy era o contador, auxiliado pelo Lídeo e pelo João Veloso. Os três eram de Antonina e o emprego em Morretes era para eles jogarem no Operário, um dos dois times de futebol de Morretes. E lá estava Odith. Era funcionária do escritório.

Marquinho De Bona era um homem de mil instrumentos. Era coletor federal, chefe do escritório do Marquinho Malucelli, presidente do Clube Sete de Setembro, agente de uma companhia de capitalização, era quem fazia os discursos em todas as solenidades e ainda correspondente de um jornal de Curitiba. Nesta época era correspondente do jornal O Dia.

Seu Marquinho terminava os seus discursos com a expressão “tenho dito” e este foi um título de um livro em que a sua filha Lígia publicou os seus discursos seguidos de um comentário para contextualizá-los.

A companhia de capitalização era a Bahia Capitalização. Odith cobrava a mensalidade dos títulos na cidade e eu fora da cidade. Foi numa destas cobranças, num dia muito quente, cheguei no engenho do seu Lori Alpendre fazer a cobrança. Ele me falou para tomar uma quira (garapa fermentada para ir ao alambique para ser destilada e sair a cachaça) enquanto ia buscar o dinheiro. Eu me excedi na quira e tome o meu primeiro porre, que conto num texto aqui no Blog.

Olga, a dona do prostíbulo da cidade, também tinha um título. Um dia eu saía da “zona” e encontrei tio João Fante (meu tio-nonno). Ele ficou assustado e queria saber o que eu estava fazendo “na Olga”. Eu expliquei a ele. Disse para ter cuidado e contou a história da Rosa –homem, do tempo que ele era moço.

A “zona“ da Olga ficava no começo da reta do Porto, uma reta que ligava a cidade com o seu distrito, o Porto de Cima. A reta do Porto era emblemática. Os mais velhos contavam da velinha que percorria os seis quilômetros da reta.

O meu pai era muito namorador, frequentador dos fandangos nos sítios. Chamávamos de fandango os bailes de sítio. Ele contava que uma noite voltava para a cidade, mais precisamente para o Central, viu uma luz se aproximando e a eguinha que ele montava começou a ficar agitada. Para não cair do cavalo e ficar a pé teve eu dar meia volta e fugir da vela.

Eu e Odith ajudávamos no clube Sete de Setembro quando tinha baile.

Com isto eu ganhava alguma coisa e Odith completava o seu salário. Ela era três meses mais nova do que eu. Com o advento das redes sociais eu encontrei Odith no Orkut. Conversávamos muito a respeito de Morretes “do nosso tempo”.

Encontrei um texto de um dos papos meus com Odith. Como se refere a Morretes de um bom tempo atrás.  Este texto é de 2006. Quando falo em “há uns 20 anos” o fato descrito aconteceu lá pelo ano de 86 do século passado.


Há uns 20 anos estava passeando por Morretes com um dos meus filhos que deveria ter, naquela época, por volta de 12 ou 13 anos. Chegamos até o Ginásio. Paramos na porta da frente e comecei mostrar as salas que estudara no tempo do grupo e depois do ginásio. Chegou uma moça, não tão moça, mas moça para nós, pois era de geração bem mais nova.

 Perguntou se eu desejava alguma coisa. Disse-lhe que estava mostrando para o meu filho onde eu estudara, que fora aluno da segunda turma do ginásio. Ela abriu um sorriso de galhofa e me convidou para entrar: venha cá, aqui tem duas velhinhas que talvez seja do seu tempo.

As duas “velhinhas” eram a Maria Joana Valério (contei para ela no nosso primeiro almoço, dos 50 anos da formatura do ginásio) e a Maria Leoni Biúdes. A moça que me levou às “velhinhas” era uma filha do Eguiberto Consentino.

Cada um de nós se lembra de um pedaço da história que todos nós participamos. Como a nossa memória é seletiva, mas por conta de dela que ao nosso comando, cada qual se lembra de um pedaço.



As aulas de desenho com mamãe, depois com Dona Desauda. As aulas de Canto Orfeônico com Dona Semíramis. O Pe. Camargo batendo com o dardo na cabeça dos alunos e brigando com o Dr. Luiz, o Juiz de Direito. Tudo isto são lembranças vivas.


Você se lembra, no escritório do Malucelli, que você era a encarregada daquela prensa e que, o mais rápido possível, passou para mim? O Darcy, o nosso segundo chefe, depois do seu Marquinho De Bonna. O João, com aquela caligrafia caprichada preenchendo os livros contábeis? Boas lembranças.