sábado, 6 de setembro de 2014

A saga do paciente

Na sexta feira após o carnaval de 2009 o meu coração deu um susto. Fui ao hospital, colocaram-me numa cadeira de rodas e me levaram direto para o setor de emergência. Colocaram vários eletrodos no meu corpo, a cada meia hora vinha uma moça com um carrinho e fazia um eletrocardiograma. Não tinha nem botões para perguntar a eles se eu emplacaria o sábado. Três ou quatro médicos não saíam do lado da cama. Preocupante! No final disseram que seria bom que eu fosse à UTI. “O senhor aceita?”. E se não aceitar? “Ah, não nos responsabilizamos”. Então tudo bem. Vamos lá. Minha filha, como não podia ser diferente não teve nem tempo para ficar apavorada, correndo com a burocracia junto ao convênio para autorizar a internação. Mas os seus olhos demonstravam a sua preocupação.

Deixaram-me durante o sábado e domingo na UTI. No sábado à noite falei para a atendente que eu queria tomar um banho. Ela se ofereceu a me lavar. Não aceitei. Queria um chuveiro. Perguntou se eu aguentaria. Se eu não aguentar você me traz de volta, sugeri.

Trouxe uma privadinha de rodas, fez-me sentar e me empurrou até o banheiro. Todos os internados ficam com uma peça de roupa que chamam de camisola que tampa a frente e deixa a bunda de fora. O local em que fiquei era de passagem e cansei de ver passagens de bundas naquela privadinha de rodas. Até que chegou a minha vez. Lá fui eu.

A moça era muito bacana, responsável. Abriu o chuveiro, esperou a temperatura certa, colocou uma toalha no chão e avisou que podia tomar o banho. Afastou-se um pouco e ficou de braços cruzados próximo à porta. Fechada.

Você vai ficar aí? O senhor está com vergonha? Bem, não é propriamente  vergonha, mas nunca tomei banho com audiência. Eu posso sair, e se o senhor cair? Tudo bem, então pode ficar aí.

Eu banho gostoso! Deve ter ajudado para sair da UTI. Mas ainda fiquei monitorado por mais vinte e quatro horas por aparelhos.

Na segunda feira fiz alguns exames e na terça fui fazer um cateterismo. É impressionante. Colocam a criatura numa maca mais estreita que o corpo. Sem lugar para colocar os braços. A máquina fica presa no teto por gigantescos parafusos. Se a máquina se soltar amassa o paciente. E eu pude entender o sentido da palavra paciente.

Começaram os preparativos. Até que senti uma coisa fria na virilha direita. Perguntei para a enfermeira o que era aquilo. Ela me falou que era tricotomia. Ela deve ter se assustado com a minha interrogação, pois foi um susto danado.

Há uma discussão teológica desde os primeiros séculos da era cristão a respeito da unicidade do homem, ou se ele era dividido em partes: corpo, alma e espírito. Os guarani têm um entendimento semelhante que costumamos nos referir à duplicidade da alma. Ñé é, que corresponde ao que chamamos de alma, é o angüery, um espírito nos moldes que chamamos visagem. Ñé é vem de um lugar semelhante ao que chamamos de céu e se manifesta quando a criança começa a entender o mundo que a rodeia. Quando a pessoa morre ela retorna de onde veio, uma espécie de  terra sem males. E o espírito ou anguery, fica zanzando por aí, por vezes “atentando” as pessoas, outras vezes ajudando.

A isto os teólogos chamam de tricotomia. Mais recentemente surgiram interpretações teológicas da dicotomia, corpo e alma.

Depois do meu susto ela me explicou que tricotomia (na medicina) significava depilar. Eu não sabia que deste a metade da adolescência praticava tricotomia no rosto, quase que diariamente.

Refeito do susto, a enfermeira “me preparou” e no final chamou o médico. E ele começou a fazer o cateterismo. Até que ele avisou: descobri o seu problema: uma obstrução de 80% numa artéria do coração. E daí, perguntei, o que é que significa isto? Tem que colocar um stent para abrir a artéria. Quer fazer isto agora ou outro dia? E tem que operar? Perguntei. Já fiz a primeira parte da operação. Ah, então faz isto já. E mandou esperar.

Foi procurar a minha mulher explicou tudo para ela e talvez alguma coisa a mais, pois ela estava apavorada. Vi depois. Ela teve que assinar uma papelada e a colocou frente a um vídeo para acompanhar o procedimento.

No final me tiraram daquela maca e me colocaram numa outra, a que vim do quarto. Deixaram-me numa sala de recuperação e recomendaram que eu não deveria me mexer nas próximas seis horas.

Seis horas depois chegou a enfermeira trocar a bandagem. Enquanto ela fazia o seu trabalho falou “empurre isto para lá”. Eu não entendia, pois não sabia o que era “isto”. Depois de ela muito repetir entendi que era o saco.

É melhor “isto” do que escroto. Palavrinha feia!

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