Patudo era o xodó de tio Almir,
irmão da minha mãe. Era um potro heterodoxo; bom de montaria, um trote macio,
mas também era um cavalo de tração. Puxava uma zorra cheia de cachos de banana
– claro que morro abaixo – e não negava tempo ruim na carroça. A sua parelha
tinha que ouvir um estalo de chicote para não deixar o Patudo puxar sozinho a
carroça.
Tio Almir era o meu padrinho de
crisma. Era ele que me levava e trazia do sítio do meu avô. Algumas vezes de
bicicleta, outras vezes de carroça, mas o bom mesmo era montado no Patudo.
Patudo e a bicicleta não eram
comuns. A sela era das melhores, compradas nas melhores selarias de Curitiba.
Os pelegos de coro de carneiro, coloridos, os arreios com enfeites prateados, o
culote e as perneiras tornavam o centro de atração das gurias por onde ele
passava.
Patudo me fazia sonhar com uma
montaria, um belo pelego, um poncho e um chapéu de aba larga. Meu pai tinha
culpa no cartório, principalmente quando falava de eguinha de nonno, campeã da raias e de
trote macio quando puxava a charrete. Era ela que nonno colocava na charrete para levar mamãe
para as suas aulas na escola e foi ela que trouxe Dona Margarida, a parteira,
quando nasci. “Porco Dio, guardar o cavalo onde, no seu quarto?” foi a
resposta que recebi. Mas ganhei uma bicicleta. Foi a minha montaria. Levei um
susto quando ele me mostrou a bicicleta na carroceria do caminhão, ao chegar de
Curitiba.
A heterodoxia de Patudo provocava
algumas surpresas. Claro que os meus tios Almir e Rubico (Rubens) já
conheciam as manias dele, mas muitas vezes fugia do controle. “Chegou a carroça
dos Serôas...” comentava-se quando chegavam na cidade, tantas foram as vezes
que a carroça disparou pela cidade. Na verdade era Patudo que iniciava a
disparada. Era a segunda maior distração em Morretes. A primeira era quando
fugia bois na cidade.
Era um misto de alegria (movimentava
a cidade) e pavor (dois cavalos em disparada e descontrolados, puxando uma
carroça com aros de metal sobre os paralepípedos que recentemente haviam caçado
as ruas de Morretes). A alegria era a movimentação, um "diferente
comum", como era o caso dos bois que fugiam.
Até que um dia fui passageiro da
carroça em disparada.
Meu avô e meus tios resolveram fazer
carvão. O sítio, no Pitinga, era rico em matéria-prima e o dinheiro do carvão
financiava a abertura das roças de banana.
O meu avô era engenhoso. Leu
revistas, livros e não sei mais o quê, e descobriu projetos de forno de carvão.
Naquele tempo não havia Internet e muito menos o Google. Nem TV. O primeiro
rádio que chegou ao Pitinga foi montado por tio Almir, tarefa de um curso feito
por correspondência pela National School. Muito chique! Era uma escola por
correspondência na Califórnia, EUA. O curso era em português.
Como não havia luz no sítio, ele ia
soldar em casa, na cidade. Mas a luz, fornecida pelo engenho da cachaça do
Central era tão fraca que precisava ser auxiliada por um lampião. Não
esquentava o ferro. Meu pai arrumou um maçarico e um ferro de solda pequeno que
era utilizado para soldar radiador de carro.
Com a orientação de papai, vovô
montou um dínamo (como se chamavam os alternadores dos carros) para carregar a
bateria para alimentar o rádio. Toda esta peripécia permitia que a minha avó e
o meu avô acompanhassem as aventuras e desventuras de Albetinho Limonta, Mãe
Dolores, etc., da novela O
Direito de Nascer pela rádio
Nacional do Rio de Janeiro.
Bem, depois de estudar projetos de
fornos de carvão, vovô desenhou o seu e chamou Zebedeu, o Bedeu, casado
com Maria da Luz. Bedeu era lavrador, pedreiro e carpinteiro. Construía casas
de madeira e de tijolos.
O forno era redondo e tinha uns 15 metros de diâmetro. Uma fornada fornecia
cerca de 100 sacas de carvão que demorava uns 15 dias para ficar pronto. Era um
carvão muito bom e havia uma boa freguesia. Seu Lourencinho, dono de uma
ferraria, era um deles.
Meus tios não gostavam que eu
andasse com eles quando traziam carvão porque a poeira sujava muito. Para se
ter uma ideia, em 1942 o meu pai foi buscar dois caminhões no Rio de Janeiro.
Era época da guerra e a gasolina era racionada e os carros eram movidos a
gasogênio. A viagem Morretes - Rio de Janeiro – Morretes demorou uns três
meses. Ele contava que na volta hospedou-se num hotel em São Paulo. Tomou um banho e saiu com o outro motorista
para fazer uma refeição. Ao retornar o porteiro não queria dar as chaves dos
quartos, pois ali estavam hospedados “dois senhores de cor”. Não, eram eles
antes de tomar banho.
Num certo dia eu fui com eles no seu
Lourencinho, avô de Valdinho, meu amigo de infância. Era hora do almoço. Após entregar
o carvão subi na carroça com os meus tios e fomos em direção de casa para
almoçar. Patudo assustou-se com alguma coisa - certa vez disseram-me aos
meus tios que ele poderia ser vidente e fora assustado por algum espírito – e
começou a correr.
Na pracinha do paredão virou à
esquerda, passou defronte a telefônica e na esquina da Farmácia do Roberto
França entrou na rua XV quase em
duas rodas. Os dois cavalos bem
ferrados e o aro de metal das rodas da carroça faziam um estardalhaço nos
paralepípedos da rua XV. Tio Almir, agarrado nas rédeas gritando Óóóóóó, pára Patudo!!!... E Patudo mais
corria. E o pessoal nas calçadas gritava “cuidado que é a carroça do Serôas que voltou a disparar!” Seguiu
toda a rua XV. Na esquina do Seu Salomão viu à direita e na esquina
seguinte, defronte a casa do Bôrtolo virou à direita e pegou a rua da
Prefeitura, virou na rua das Oficinas, voltou a entrar na rua XV, passou
pela pracinha do paredão e novamente pela ferraria do seu Lourencinho, costeou
o rio, entrou na rua do hotel, defronte à Igreja Matriz, passou por trás do
grupo, pela rua do Centro Espírita e os cavalos já estavam suando. Tio Almir
rouco de tanto gritar e tio Rubico ficou no meio do caminho. E a cidade em
polvorosa. Fazia tempo que não fugia boi na descarga do vagão de gado no início
da reta do Porto.
O espetáculo era como a correria das
velhas diligências e carroções dos seriados do Velho Oeste, que passavam no
cinema do Nhozinho.
Minha mãe viu tio Rubico, todo sujo
de carvão, perguntou por mim.
- Está com o Mimo (apelido de tio
Almir) na carroça!
- Ele está bem, não está machucado?
- Não sei, acho que não. Nem sei
onde estão...
Quando a carroça começou a correr eu
caí no assoalho dela, misturado com o resto de carvão, e não conseguia levantar
com os saltos que a carroça dava. Quando os cavalos acalmaram pude sentar no
banco, ao lado de tio Almir e voltar para casa.
Além da sujeira pedi um pé da
“loirinha” (uma sandália de sola de pneu, lançada por Aramis Zanardi e
difundida pelo Ewaldo Zilli). E por uma semana saía carvão dos meus ouvidos e
das minhas narinas.
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