terça-feira, 3 de agosto de 2010

Por que e como me tornei um antropólogo




Este texto foi publicado em http://mcherobim.multiply.com/journal/item/6/6 em 29 de julho de 2007 às 14:39.



Há quase duas décadas precisei escrever um memorial e nele mostrar porque e como segui a carreira na Antropologia. Claro que alinhei uma série de fatos, verdadeiros, é claro, mas talvez não suficientes para dar uma guinada na vida em direção da Antropologia. Mas existiu um fato concreto, real, que me fez pensar: é isto que eu vou ser.

 Estas lembranças voltaram à minha memória porque no início de agosto fará dois anos que o meu amigo Almir faleceu (este texto foi escrito em julho de 2007), Ele foi o autor de uma interferência nos meus projetos de vida, em me tornar um professor (como comento lá no final).
 Eu era sargento radiotelegrafista da FAB, com um ano na graduação militar, nos meus 22 anos, trabalhava numa estação de aerovias em Xavantina, a atual Nova Xavantina, Mato Grosso. Faz tempo!
 Cheguei lá no dia em que os revoltosos de Aragarças fugiram para a Bolívia. As tropas do Exército acabaram com o estoque de comida. Com a saída do Exército todos os vôos ficaram proibidos na região e como era época das chuvas, ficamos isolados. A nossa alimentação passou a se constituir de arroz com abóbora num dia, abóbora com arroz no outro e assim, intercalando o cardápio, passamos cerca de dois meses.
 Quando os aviões do Correio Aéreo Nacional voltaram a voar na sua linha Rio de Janeiro – Santarém, pudemos sentir como era bom adoçar o café e salgar a comida! Abóbora? ...levei uns 10 anos sem comer.
 Num dos primeiros vôos do CAN (Correio Aéreo Nacional) havia entre os passageiros um homem, de uns trinta anos, alto, loiro, cabelo cortado curtinho, falando inglês. Perguntei para um sargento da tripulação:
  - quem é este cara?
 - um antropólogo.
 - Antropólogo? O que é isto? O que faz? Quis saber.
 - sei lá!  Ele vai numa aldeia de índios, faz perguntas, anota, e depois volta para a terra dele e escreve um livro.
 Bah! Pensei com os meus botões. É isto! Vou estudar antropologia, venho para cá, fico numa boa, não vou ter tenente, capitão, coronel, brigadeiro para me torrarem a paciência com as suas ordens... eu me dou bem com os Villas Boas, foram amigos do Lourival (um primo do meu avô, oficial do Exército e que participou da Expedição Roncador Xingu)... Vou ser antropólogo...
 Quando falei dos meus planos para alguns  amigos eles me perguntavam o que era antropologia, o que fazia...  ficavam sem respostas, pois eu também não sabia. Se dissesse que era para voltar para o Xingu iriam me chamar de doido.
 Como andei atropelando os regulamentos militares em Xavantina transferiram-me para Curitiba para trabalhar com dois suboficiais “disciplinadores”. Por minha sorte um deles foi aluno da minha mãe, em Morretes.
 E aí começou a minha busca para saber onde poderia estudar Antropologia. Indicaram-me o curso de História Natural. Mas era Antropologia Física. Até então esta especialização não me dizia nada. Quando descobri o que era Antropologia Física, já aluno do curso de História Natural, senti que não era aquilo que me levaria para o Xingu. Indicaram-me, então, um curso da Universidade Católica, Sociologia, Política e Administração Pública.
 Por alguma coisa que eu talvez tenha feito, a esquerda começou a me chamar de “gorila” e a direita, após o golpe achavam que eu era comunista. Por sorte não tive tempo de ter crise de identidade política e o bom senso me indicou uma transferência rápida. Voltei para São Paulo. Terminei o meu curso na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e em seguida entrei para o Pós de Antropologia na Universidade de São Paulo.
 Sentia que o meu Projeto estava tomando forma. E é aí que Almir entra na jogada.
 Almir era aluno de um dos cursos que eu fazia e era diretor do Centro de Ciências Humanas da OMEC, agora Universidade de Mogi das Cruzes. Convidou-me para lecionar e eu aceitei na hora, pois até então eu consertava TV para complementar o meu ganho na FAB. As instituições de ensino superior privadas, no final da década de sessenta, início da de setenta pagavam relativamente bem e eu me enchi de aulas. Pude assim me livrar de todos os compromissos financeiros, comprar um carro e uma casa. E ir ao Xingu. Mas a FAB começou me atrapalhar. O final da década de sessenta e início de década setenta, com repressão política, muitos sargentos especialistas sendo presos, o entusiasmo de ser "fabiano" foi esfriando. Deixou de ser uma carreira, transformando-se num simples emprego. 

Mas ainda na FAB retornei ao Xingu. Ao passar por Xavantina, a última escala para chegar ao Xingu. Ainda ao descer do avião lembrei do diálogo de onze anos passados. Um ano depois deixei a FAB.
Os índios Guarani do litoral paulista "roubaram-me" do Xingu, pois naquele momento já desenvolvia um projeto de pesquisas etnológicas entre os índios Guarani. 

Este foi o início de uma vida de muitas décadas.

Em tempo: no final do expediente das organizações militares é lido ("cantado") um Boletim (Boletim Ordinário), uma espécie de Diário Oficial. Num deles foi publicado que todos os militares que tivessem cursos civis, em qualquer nível, deveriam registrar estes cursos. E eu havia feito o curso de Sociologia. Informei e "cantou em Boletim".

Dois ou três dias depois eu me encontrei com um oficial e tivemos o seguinte diálogo:
- Cherobim, você fez o curso de socialismo?
- Não, fiz o curso de Sociologia. Se saiu errado vou corrigir.
- É que para mim socialismo e sociologia é tudo a mesma coisa.
- Mesma coisa, como?
- São todos subversivos. 
- Subversivos? 
- Claro, estão sendo cassados.
- Bem, se este for o parâmetro, muito mais militares foram cassados que sociólogos. Neste caso as escolas militares são subversivas. O Senhor não acha?

E assim encerrou a nossa conversa.

Este diálogo mostra bem como eram os ânimos no período pós AI5.


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