domingo, 4 de setembro de 2011

O espirro e a dentadura

Seu Vicente resolveu arrancar todos os seus dentes e colocar uma dentadura. Ele tinha que ir a uma festa onde ia aparecer então precisava estar com os azulejos em ordem. E foi ao meu tio:
- Juca me arranque todos estes dentes e coloque uma dentadura.
- É pouco tempo, Vicente, não dá. A gengiva vai murchar e você vai ter que fazer outra dentadura.
Isto faz tempo! Eu era um piazito pré-adolescente. Foi lá pela década de quarenta. Dá para sentir o drama de um tratamento odontológico numa pequena cidade do interior. A anestesia deixava a boca adormecida por todo o dia e a broca girava com o pedalar do dentista. O cérebro tremia. Literalmente.
Não teve jeito. Tio Juca teve que fazer a dentadura como o cunhado queria. Convencer cunhados não é fácil. Coitado do Vicente, Juca, você vai deixar que ele vá à festa com a boca deste jeito?
Naqueles antanhos não havia carro. Meu pai foi o primeiro caminhoneiro, um carroceiro promovido. Durante um ano o caminhão só andava para frente; imaginavam que fosse como carroça, que não andava de ré. Até que um dia ele deu uma cotovelada numa alavanca do volante, que até então ele não sabia a finalidade. Vai que mexer nisto vou estragar o caminhão? Ao arrancar o caminhão foi para trás e não para frente como se esperava. Foi um baita susto. E agora? Tenta daqui, tenta dali, e nada do caminhão ir para frente. Até que ele teve a ideia de dar uma cotovelada com o outro cotovelo. No sentido contrário. E o caminhão começou a andar para frente. E foi assim que meu pai e os morretenses descobriram que, diferente das carroças, os caminhões andavam para frente e para trás.  Meu pai contava que virou um herói. Livrou-se até das gozações por ter medo de sapos.
Tirando este caminhão, o que havia em Morretes eram carroças, toco-duro, aranhas e charretes. Numa comparação rústica, a carroça era o caminhão e o toco-duro era a picape leve daqueles tempos. Uma carroça com duas rodas e sem molejo. A charrete era a condução de passeio. Uma carroça que aproveitou a recente tecnologia automobilística. Da época. Um eixo com duas rodas de carro com pneus, molejo, um banco confortável e eu não sei por que, a preferência era por uma eguinha ligeira. A madrinha das tropas também era uma égua. A égua madrinha. Ela que dava o rumo para  a tropa. Se fosse potro,era para montaria.
Mas claro que também havia muitas éguas boas de cela. Nonno tinha uma égua que ninguém ganhava dela nas corridas de raia. E era boa de arreio na charrete.  Foi esta égua que foi buscar a parteira, Dona Margarida, quando eu nasci. Ela tinha um passo que era quase um galope. Eu ainda me lembro desta égua tordilha. Ela está nos meus lampejos de memória. Todos os dias nonno levava e trazia a minha mãe para trabalhar na cidade. Ela era professora.
A aranha era uma charrete com rodas de ferro. Ou seja, uma roda de madeira revestida por um aro de ferro.
Aos domingos, as carroças, os toco-duros, as aranhas e as charretes estacionavam em volta do morrinho da igreja. Todos com as suas roupas de missa. Alguns vinham a pé lá do Central, onde nasci. Eu morava no caminho do Central. Homens e mulheres vinham com as suas roupas de missa e os sapatos pendurados nos dedos. Quando chegavam às margens do valinho da química paravam, lavavam os pés e calçavam os sapatos. Seu De Rocco com a esposa  na frente, seguidos dos filhos, noras, netos, vizinhos, etc.
Quando eu já era adolescente fui assessor de cerimônias religiosas – eu e Valdinho éramos sacristãos privilegiados (eu já escrevi a este respeito). As figuraças eram o seu José De Rocco e o Sebastião Cavagnolli. Eles eram os responsáveis, um em cada lado da nave da igreja, em entoar o cantochão  Et cum spiritu tuo, em resposta ao Dominus vobiscum entoado pelo padre Camargo. Um dia perguntei para o seu De Rocco o significado daquelas palavras. Você sabe que eu não sei? É alguma coisa com espírito. Fui aprender o significado mais tarde, no ginásio. Padre era o nosso professor de latim. Eu e Valdinho sempre tínhamos boas notas.
Eu não me esqueci de seu Vicente. A sua condução era uma aranha e ele morava na Fortaleza, um dos núcleos de colonização da Nova Itália. Seu Domingos (Don Domenico) era o capo de lá. Pai do Vicente e sogro do tio Juca. Um dia, que seu Vicente não soube explicar, se era resfriado ou os pelos do nariz, começou a espirrar. E num dos espirros, o mais forte, a dentadura voou da sua boca para baixo da roda (de ferro) da aranha. Ficou em pedaços.  
E foi como tio Juca avisara... não lhe falei Vicente?...
Mas aí a gengiva já secara. Foi mais fácil fazer nova dentadura. Com menos sofrimento.

sábado, 2 de abril de 2011

A bananeira da terra e o “braço da direção”

Morretes  já foi conhecida como a terra da cana-de-açúcar, da banana e agora do barreado. Cada fase deixou a sua história. A fase da cana-de-açúcar para a fabricação da cachaça tornou o verbete morretiana um sinônimo da cachaça. Isto se deve ao Marquinhos Malucelli que tinha a sua pinga morretiana com o “pau dentro”, isto é, um pedaço de gomo de cana dentro da garrafa. Era a mesma pinga numa garrafa bonita e de preço bem mais alto. Marquinho endoideceu, comentavam. Hoje se elogia o seu tino para negócios.

Quando os Malucelli construíram a usina de açúcar, era grande o trânsito de caminhões, carroças, tratores, carregando cana. Do amanhecer ao anoitecer, durante a safra de cana. Eu fui criado na Estrada do Central onde ficava o engenho. Havia outros engenhos de pinga que também trabalhavam a todo vapor.

Elias Maia era o “Rei da Banana”. Parte da banana consumida em Buenos Aires era morretense. Em Curitiba também. Vagões ferroviários saíam carregados de banana embalada para viagem marítima, exportada pelo porto de Paranaguá. 

A banana também era transportada para Curitiba por via ferroviária.

Os bananais ficavam nas encostas das serras. Os cachos eram transportados nas costas, por vezes por zorras, até as carroças ou aos caminhões e daí para a cidade.

 Papai tinha um caminhão e volta e meia era contratado para ir buscar banana nas roças.  Ainda me lembro de um Chevrolet ano 39 serpenteando por estradas de carroça, morros acima.

Eu tinha os meus sete, oito anos, e era seu passageiro constante. Ele se afastava e me sentava frente ao volante e falava: leve! Levar era dirigir. Mas conservava o controle dos pedais da embreagem, do freio, do acelerador e o câmbio (troca de marchas). E não admitia as minhas barbeiragens. Quando cometia alguma ele gritava logo “Porco Dio! Não sabe dirigir?”. Eu me afastava e ele me colocava de volta e vinha a “voz de comando”: leve.

O meu pai tinha vocação para capo. Que eu me lembre, dos cinco irmãos era o único que era chamado de nonno. Eu, como filho mais velho, queria me transformar em capo, seu herdeiro. Hoje, pelo que sei, parece-me que sou o único nonno entre os meus primos.

Era comum, nos carros de então, escapar o “braço da direção”, uma alavanca de ferro que liga o eixo do volante à roda, o carro fica desgovernado. Meu pai cortava “camisas de câmara de ar” e com ela enrolava o “braço da direção”. Este cuidado se devia da falta de confiança que ele adquiriu numas viagens numa roça de banana. Foi lá para os lados do Marumbi. Para lá dos Gnata. Era serra.

Vinha descendo a serra quando soltou o “braço da direção”. O caminhão saiu da estrada, desceu uma barroca e parou seguro pela mata. Os ajudantes estavam em cima da carga de banana, com os pés sobre a cabine, como era costume. Dentre eles estavam meus dois tios, irmãos de minha mãe, tio Almir e tio Rubico.

Quando o caminhão parou lá embaixo, o pessoal que estava sobre a carga foi arremessado para dentro do mato.

Refeitos do susto, contava meu pai, fez a contagem do pessoal que estava sobre a carga. Estavam todos, menos tio Rubico. Rubicooooo!!!! Nada de Rubico. Será que Rubico morreu? Pegaram foices e facões de começaram a afastar o mato para encontrar o desaparecido.

Depois de muito trabalho, ouviu-se, baixinho, to aqui!... Onde? Aqui, onde? aqui!... Ele estava empoleirado, abraçado no alto uma bananeira da terra. Alta e de tronco fino.

Quando ele foi arremessado bateu e se abraçou no alto da bananeira, acima do cacho. Como balançava, ele temia que se falasse alto a bananeira viesse a quebrar com ele lá em cima.

Tiveram que cortar escoras com forquilhas para escorar a bananeira para ele descer.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

1º de abril de 2011

Há 47 anos, nas primeiras horas deste mesmo dia em 1964 as tropas do General Olímpio Mourão saíram de Juiz de Fora em direção ao Rio de Janeiro. No decorrer do dia aconteceram várias coisas e no final foi consumado do golpe de 1964.

O que temos depois deste tempo? Temos este Brasil. Esta é a realidade. Uns dizem que com o golpe está pior e sem o golpe seria muito melhor. Não sei. Temos o que temos.

Dizem que temos uma democracia cheia de defeitos. Democracia sem defeitos é utopia; ela é defeituosa por não é um fato, mas um processo. E este processo  nos obriga olhar para trás, não só nestes 47 anos, mas nos 66 anos desde a queda do Estado Novo em 1945, ou mesmo nos 81 anos do golpe de 30. Ou até antes. Olhar para trás para que possamos olhar o futuro sem os erros do passado.

Os erros são muitos e recorrentes. Ainda temos o peleguismo atuante. Desde Getúlio. Um governo com características peleguista é um governo fascista. O peleguismo foi a base do governo Lula. Ainda bem que ele soube segurar os seus pelegos. Hoje temos duas classes de políticos, ambos órfãos do regime militar : os que choram a pretensa “ilha de paz e sossego” que se pretendia passar aos cidadãos, e uma outra classe que aprendeu todos os defeitos do regime e hoje posa de vítimas.

E nós, cidadãos, vítimas de um processo capenga? Teremos que tomar consciência de nossa cidadania, escapar do marcatismo “de esquerda”, do politicamente correto.

O dia 1º de abril é o dia da mentira. Proponho torná-lo o dia da consciência da cidadania.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Nós e o fumo

Entre a minha casa e a agora chamada Ponte Velha, a ponte da Vila Santo Antonio, havia uma casa geminada. Na  casa da frente morava Dona Albertina, com duas filhas, Ione, a mais velha e Iole, mas nova e mais velha do que eu.  Dona Albertina era casada com o seu Francisco, conhecido como Pica-pau. O pássaro. Na casa dos fundos morava Dona Albertina, casada com o seu Artur, chefe dos guarda-linhas dos correios e telégrafos. Guarda-linha era aquele funcionário eu percorria as linhas telegráficas dos correios. Dona Albertina, a xará da primeira (elas nao se davam) tinha um casal de filhos que morava com ela. Nardinho, da minha idade e uma filha, já adulta, que enrolava cigarro de palha e vendia em maços de vinte cigarros.

Nardinho ajudava a irmã na fabricação de cigarros e "desviava" um maço para fumarmos no porão dos fundos de casa da minha casa. Isabel, a “secretária” de minha mãe, um dia nos viu fumando.

- Mas estes meninos fumando!...   Vou falar pra Dona Dulce.

Éramos piazitos, no máximo com 10 anos de idade. Tivemos que comprar o silêncio de Isabel. Tivemos que repartir o maço em três.

Um dia papai descobriu. Não sei como. Mas não falou nada para mamãe.  Aplicou uma chantagem irresistível: Se você fumar o pai vai para a guerra. Todos aqueles que estão lá são pais que têm filhos que fumam.

A chantagem funcionou; meu pai foi o melhor amigo que já tive. Era aquele bronqueiro, cheio de palavrões que aprendeu com nonno, mas os olhos marejavam facilmente.

Nonna fumava cigarros de palha. Tinha até uma guilhotina de picar fumo. Nonno não fumava e nonna não fumava na frente dele. Tio Tonicão fumava cigarros iguais aos da mãe (nonna) e tinha hábitos parecidos com os dela, como o de esvaziar os colchões. Os colchões eram um saco cheio palha de milho e era de onde tiravam a palha para fazer os cigarros.

Nonna e Tio Tonicão me ensinaram a picar o fumo, enrolar a palha, mas eu não fumava. Vai que inventassem uma nova guerra!...

A sociedade nos impõe vícios. Fumar era uma forma de mostrar macheza. Hoje em dia quem não bebe é out. Out era quem não fumava. Fumar era assim. E fumei até há uns vinte e cinco anos.

E hoje aqui estou com uma gripe forte e o resultado do raios-X indicou uma mancha que poderia ser enfisema pulmonar ou uma pneumonia. Boa notícia: era pneumonia. Notícia pouco melhor: não era pneumonia, mas uma inflamação. Mas com acompanhamento as expectativas são positivas.

Não fosse o fumo, não estaria aqui. Quem hoje fuma deve pensar no futuro. Morrer, morre-se de qualquer forma, mas morrer com qualidade de vida é muito melhor do que anteceder a morte com todos aqueles sofrimentos que os males pulmonares causados pelo fumo provocam.

O corpo somos nós. Ele é a nossa vida. E nós o maltratamos ao para nos mostrarmos socialmente com bebidas, fumos, drogas. Todos queremos ser in. Mas não nos maltratamos somente por isto; nós nos maltratamos por questões morais, religiosos, estéticos, etc.

E o fumo permeia tudo isto.

O jacu do seu Sinibaldo

O jacu é uma ave de veneta. Diria, hoje, uma ave com bipolaridade, pois o seu humor varia entre uma mansidão extrema e uma ferocidade terrível. E parece ter memória excepcional, pois reconhece todas aquelas pessoas de quem não gosta e faz chamegos com aquelas pessoas que gosta. Esta variação de humor poderá até nos levar pensar que jacu também é gente, como se ouvia falar de um antigo ministro collorido a respeito de seu cãozinho. Dizia-se ser fofoca da oposição e aqui não vou além da figura de retórica.

É muito perigoso para um ádvena querer entrar em grupos de fofoca em Morretes em face de rede de parentela. Seu Sinibaldo era nosso vizinho. Era um dos membros da colônia Nova Itália, casado com  irmão de um tio e o seu sogro era irmão do marido de uma minha tia avó. Era tio primos meus e mais tarde se tornou co-sogro do meu tio, seu cunhado. E eu me tornei primo por afinidade do seu filho caçula. E dois irmãos do Seu Sinibaldo casaram com duas irmãs, filhas da minha tia avó, primas da sua esposa.

Uma rede muito imbricada. Ah, não entenderam! Hoje estou meio atrapalhado. Pudera, estou num quarto de hospital tentando curar os pulmões estuporados por tabagismos ativos e passivos. Mas eu estou eufórico, pois o médico acabou de me falar que com um controle irei longe. Quando eu fico eufórico acho de contar causos de Morretes, mas a euforia também nos deixa meio atrapalhado.

Quando falamos em algo imbricado usamos como analogia a disposição das telhas num telhado. Se mexer numa telha, três ou quatro outras saem do lugar. Se fofocar um morretense estaremos envolvendo três ou quatro outros na fofoca.

Alceu Maynard de Araújo foi meu professor e depois colega de docência. Ele tinha um artigo a respeito de uma pesquisa realizada em Alagoas me que falava da D.I.V.A. (Departamento de Investigação da Vida Alheia). A D.I.V.A. que ele descrevia reunia-se numa farmácia e eu me lembrava da farmácia do Roberto França, casado com a  ilha da minha tia avó que  me referi acima. Os chefes da D.I.V.A. eram o Cilo, filho do Roberto, Seu Piero e Seu Leopoldo Vizini. Mas havia outras D.I.V.A.s em Morretes. A barbearia do Valdico era uma delas. Uma D.I.V.A. enxuta era na alfataria do Honilson Madaloso. Era a rodada da chimarrão que Honilson preparava  na reunião com seu Arlindo de Castro, seu João Cebola e seu Tone Gonçalves. Eu era um guri, mas chegava mais cedo para preparar o chimarrão, deixar a água bem chiadinha, para poder ser aceito na rodada.

Não dá para contar os causos desta rodava pois correrei o perigo de não poder mais aparecer em Morretes, Apesar de eu ser o único sobrevivente do grupo.

Em Humaitá, Amazonas, eu participava da D.I.V.A. local nas escadas do porto fluvial. Salu, então Prefeito, Israel, farmacêutico e presidente da Câmara, Venturinha que preparava o café. E eu, que entrei ao grupo a convite do Salu. Funcionários da Prefeitura, barqueiros, beiradeiros, pescadores, etc., todos iam contar as boas novas da cidade. Os evangelistas e Humaitá.

Mas a minha euforia pulmonar me fez lembrar do jacu do seu Sinibaldo. Era um homem à frente e acima da média dos seus contemporâneos. Era escritor e poeta. Espírita. O galinheiro era uma mansão galinácia. Tinha um “navio” ancorado no rio (Nhundiaquara). Na verdade uma barcaça que não podia fazer grande coisa pois não passava  na corredeiras (apelidadas de cachoeiras do rio). E entre tantas outras coisas, tinha um jacu.

Eu e as minhas irmãs e eu éramos pequenos. Como todas as crianças fazíamos algumas brincadeiras típicas da idade. Uma  vez comemos um cacho de banana outro. Comíamos apertando a casca, deixando-a oca. Quando demos pela coisa havíamos comido todo o cacho. Não sei quem teve a idéia, acho que a minha irmã, logo após a mim, de encher as bananas de terra e deixar do quintal do seu Sinibaldo. Deixamos arrumadinhas, pois era muita banana para pouco espaço.

Quando dona Italinha viu aquilo ficou apavorada. Achou que a feitiçaria contra ela.  Ela e minha mãe eram  muito amigas e ficou na frente da casa até a minha mãe chegar da escola (era professora): Dulce, fizeram um feitiço contra mim, ajude-me a rezar terço... e as duas desfiaram mil rezas até dona Italinha se acalmar.

Minha mãe deve ter desconfiado daquele feitiço pois havia nos proibido de comer aquela banana, para amadurecer um pouco mais. Min há mãe achou de deixar pelas rezas e esquecer o caso.

Nosso divertimento era enfezar o jacu. Fazíamos isto porque ele dava mostras de ser nosso amigo. Mas era diferente com o seu Camilo e com o seu De Rocco.

Seu Camilo, homem quieto e de boa paz tomava conta da sorveteria e da torrefação de café no Seu Nhozinho. Seu De Rocco, lavrador do Capituva e rezador de boa voz nas missas de domingo e nas missas solenes. Era bem falado na cidade e tentavam imitá-lo quando respondia o Dominus Vobicus no meio da missa: Et cum spiritu tuu. A solenidade da missa ia aos extremos quando De Rocco fazia  dupla com Sebastião Cavagnolli. A voz da dupla valia pela missa. 

A cidade toda tinha o maior respeito para com o seu De Rocco, menos o jacu do seu Sinibaldo. Nós, piazitos na mais tenra idade, eramos quem socorria o seu Camilo e o seu De Rocco dos ataques do jacu.

Morretes, desta época, era pavimentada com conchinhas do mar. Depois fomos saber que estas conchinhas eram sambaquis, local de sepultamento dos antigos índios da costa brasileira. Com a proibição do uso “das conchinhas” a prefeitura resolveu pavimentar as ruas com paralepípedo, mas antes de fazer isto estendeu a rede de água e de esgoto. A nossa brincadeira era correr por aquelas valetas de cerca dois metros de profundidade por menos de um metro de largura.

Jazar era o responsável dos trabalhos de instalação da rede de água e de esgotos. Moço forte, recém chegado de Piraquara, ao invés de se restringir ao trabalho de feitor era o primeiro a pegar a picareta para abrir as valetas.

Antes da instalação da rede de água e de esgotos as casas construíram as suas “casinhas” em cima de um buraco chamado de “fossa negra”. Era um perigo ser ferroado  por uma mosca varejeira quando se praticava o sagrado momento filosófico.

O meu pai construiu não uma casinha, mas um WC, com um vaso de louça como os atuais,  com um encanamento pra despejar os dejetos no meio do rio. Ah, se os ambientalistas de hoje vivessem naquele momento!

Era uma privada moderna, só que a descarga era feita jogando água com balde. Na nossa cabeça infantil não entendia como é que jogava toda a água e ainda ficava água dentro da bacia. Papei dizia que era assim mesmo, mas para nós, crianças, havia algo errado.

Seu Sinibaldo, o dono do Jacu, inovou ao colocar a privada dentro de casa. Não tinha os nossos inconvenientes de ter que sair nos dias de frios, de chuvas, à noite.

Vovô, pai de mamãe (meus avós maternos eram chamados de vovô e vovó e os paternos eram chamados de nonno e nonna), adorava a nossa privada. Uma privada no mundo das casinhas.

Os senhores de então usavam uma calça com a cintura mais alta. Apesar  de haver as passadeiras para passar o cinto, costumava-se passar o cinco  por fora e mais abaixo. Quando se ia fazer as  necessidades fisiológicas desafivelava o cinco e passava no pescoço. Havia até piadas neste sentido.

- Eu vi fulano no mato com o cinto no pescoço.

- Meu Deus, ele se suicidou?

- Não, estava cagando.

Vovô tinha este hábito. Como ele gostava tanto da nossa privada, saía feliz com o corpo aliviado e com cinto em volta do pescoço. E assoviando. E o meu avô era a terceira pessoa a que o jacu tinha marcação.

O jacu não gostava do meu avô e odiava o seu assovio. Mas nunca o atacara. Até que, um dia, o jacu estava num daqueles dias (se fosse jacu fêmea diria estar de TPM), pulou em cima do meu avô. Puxou o cinto para se defender pelo lado oposto da fivela, bateu na sua cabeça provocando um “galo” (calombo resultado de uma batida). Ao fugir do jacu enroscou a sua cabeça no varal de roupas.

O meu avô ficou inconformado com o ataque. Era um homem bem articulado, escrevia poesias comestrofes decassílabas, camonianas, refertas (abundante, cheia) de beleza estética, com predominância da personificação ou prosopopéia[1]”. Os seus discursos lidos em solenidades. Atacado por um jacu. Este ataque foi tema de discussões que duraram alguns meses.

Seu Sinibaldo ficou muito envergonhado com o que aconteceu e se desfez do jacu. Mas o meu avô não esqueceu do ataque que sofreu.



[1] Beto Cardoso, poeta morretense, foi quem definiu as poesias de vovô como camonianas. As poesias de Beto também eram camonianas e tinha Morretes como tema. As de vovô tinham um estilo biográfico. Os versos de Castro Alves eram  camonianos. Ver http://www.revista.agulha.nom.br/@fma16.html.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

O galinheiro e a transa

Outro dia eu escrevi a respeito de festas de igreja. Escrever é prosear com lembranças de fatos da vida. E registrá-las.  Prosa puxa prosa; lembranças puxam lembranças. Escrever é montar imagens e em cada uma abrem-se janelas para outras lembranças. Como a que contarei a seguir.

A casa que descrevi, geminada com a da senhoria e com o terreno com a extensão da quadra, tinha-o dividido ao meio. A primeira parte dividida em dois lotes, um para casa; a segunda parte era uma horta, um passatempo da proprietária da casa. Havia, nesse contrato de locação uma espécie de um sistema de prestações. Um casal novo, ao locar a casa, deu segurança pessoal (companhia) e financeira (sobrevivência) e recebeu de volta a atenção, quase filial. Eram duas senhoras idosas - para os padrões de então -, uma de 50 e tantos e outras de quase oitenta anos de idade. Dentre estas atenções, o acesso a horta. Era mais um acesso para passeio e admiração às verduras e legumes muito bem tratados e algumas frutas, pois todas as manhãs, quando as duas senhoras faziam as suas colheitas, traziam a “nossa parte”.

Nos fundos do lote da casa da senhoria havia um galinheiro. Completava a alimentação com carne e ovos. A metade da alimentação, ou talvez mais da metade, vinha do quintal.
Os gêneros alimentícios eram quase todos comprados nos armazéns de secos e molhados e vendidos a granel. Feijão, arroz, trigo, fubá, macarrão, erva. Parte do feijão era produzida na horta. Uma vida rural-urbana

 Ao lado da casa da senhoria havia uma casa, com uma casinha aos fundos. Parte da parede desta casinha era geminada com a parede da parte coberta do galinheiro, onde as galinhas ficavam recolhidas e onde havia os ninhos onde botavam os ovos.

Os donos da casa vizinha estavam sempre ausentes. Não me lembro de que os tenha visto alguma vez. E na casinha havia um quarto ocupado pelo Polaquinho, espécie de guardião da casa. Este guardião deveria ser louro, talvez de origem polonesa, mas, no Paraná (do sul) polaco, polaca, são sinônimos de louros. Esta referência está fora do departamento do preconceito.

Certa noite, já passava da meia noite mas ainda não era manhã, fomos chamados pela dona da casa. Era uma daquelas noites “paradas”, sem vento, em que as folhas secas estalam alto ao serem pisadas. O céu sem nuvens, pontilhado de estrelas, permitia ver Marte, o Cruzeiro do Sul, as Três Marias e todas as constelações e estrelas identificáveis a olho nu.

Os olhos e a voz da dona da casa demonstravam temor: “Acho que tem ladrão roubando galinhas; elas estão inquietas”. Roubos na horta e no galinheiro afetavam a sobrevivência, sem falar de acontecer numa comunidade que até raposa em galinheiro era escândalo.

Valente como todo moço que ainda não chegara à metade dos “vintes”, recém-chegado de Mato Grosso, ansioso para voltar a usar a sua winchester 44 papo amarelo trazida de lá. Vou pegar este ladrão de galinha na ponta do pau de fogo, pensei. Tal qual um John Wayne, um Tom Mix, um Alan Ladd, heróis dos seriados nos cinemas do interior antes se serem transformados em igrejas crentes. Exercitei o porta-gatilho como faziam estes heróis do bang-bang; carreguei-a e repeti a pantomima.  Colocava a Tropa de Elite nas chinelas. A juventude e o heroísmo se multiplicam.

Quando cheguei próximo de onde o barulho inquietava as galinhas, havia silêncio. Nisto um ruído e as galinhas começaram a se alvoroçar. Com toda a coragem que aquela carabina me proporcionava, lembrei que era um sargento, ensaiei aquela voz de comando de enquadrar recrutas e melhor que as vozes de esquerda, direita, meia volta, saiu o “saia daí e rápido!”. Os sargentos pé-de-poeiras ficariam enciumados  com tal voz de comando de um sargento radiotelegrafista. Nada. Novo ruído e nova queixa das galinhas. “Saia daí! Vou contar até três. Se não sair irá fogo!” As mulheres encolhidas, quietas... Esperando começar a guerra! “UM... DOIS... TRÊS...”  PÃÃÃÃ! Um estampido seco numa noite seca! Um grito se seguiu ao tiro: “NEM AQUI PODE!...” E um tropel. Ou dois. Sei lá. A velocidade era tanta. Nem o portãozinho da entrada da casa foi aberto. Fui verificar, estava trancado. O trabuco já estava pendurado no ombro, à bandoleira. Todo herói dorme o sono dos justos.

No dia seguinte comentei com um conhecido que havia espantado um ladrão de galinha. Ele deu uma risadinha e matou a charada. Ladrão de galinha, nada! Você espantou o Polaquinho. Ou alguém que ele deixou ir trepar naquela casinha. O pessoal usa aquela pra comer a mulherada, você não sabia? A cidade toda sabia. Para o azar do Polaquinho e dos seus convidados, eu não sabia. Ninguém me avisara.

Enquanto morei lá as galinhas não mais foram incomodadas nos seus sonos. 

Uma festa de igreja

Eu morei em São José dos Pinhais, hoje apelidada de cidade metropolitana da Grande Curitiba. Uma coisa boa era quando a Prefeitura limpava a valeta que cortava duas quadras defronte à Igreja Matriz para o churrasco comunitário. Eu morava a uns 100 metros do local. No dia seguinte todo mundo sentia as queimaduras nas pontas dos dedos polegar e indicador. Já pensaram estes dois dedos fora de serviço?

A cidade era pequena; se escorregasse no centro da cidade iria para nos sitiozinhos com as suas hortas bem cuidadas. Sentia-se morar no sítio e na cidade ao mesmo tempo. Um ambiente rural-urbano. Diferente de Morretes em que o rural e o urbano eram claramente delimitados.

As casas tinham, todas elas um quintal que ia até o outro lado da quadra, com as suas hortas, galinheiros e uma coberta, alguns com um compartimento fechado a guisa de depósito. Ali se armazenava a lenha, as ferramentas agrícolas de uso na horta e as sacas de serragem (pó da serra).

Havia os meninos, com carrinhos de mão, que forneciam serragem para o fogão. Colocava-se uma garrafa na boca principal do fogão e ia-se colocando a serragem em volta e socando, até completar toda a parte de queimar a lenha. Entre esta parte e a de baixo havia uma grelha de ferro que permitia a passagem da cinza para o seu depósito. Para que a serragem não escorresse por esta grelha, ela ficava sobre uma folha de papel.

Depois de toda a serragem socada, tirava-se a garrafa e acendia o fogo no espaço por ela formado. O ar começava a circular forçado pela sucção de ar da chaminé. “Tinha-se fogo”, na verdade um braseiro, que permitia fazer o café da manhã e o almoço. À tarde fazia-se o mesmo para o jantar. No inverno todas as portas internas da casa eram abertas para que o fogão servisse como aquecedor.

E o forno de pão! Ficava no fundo do quintal, sob um telheiro. O fogo era aceso enquanto a massa era feita, batida e deixada para crescer. No inverno o calor do fogão ajudava para acelerar o crescimento do pão, do cuque, do chineque. Dava tempo para consertar a galinha para ser assada. Uma galinha criada no quintal. Depenada com água quente, num latão sobre a chapa do fogão.  

Na transgenitalização galinácea, no Paraná frango vira galinha e aqui em São Paulo a galinha vira frango. Consertar a galinha era prepará-la para assar, cozinhar, etc. Na verdade desconserta, desmancha. Ah, estes regionalismos paranaenses!

Tempo bom! Bem, o passado sempre é bom, melhor que o agora.

Esta introdução é para montar a imagem para falar das festas de igreja na periferia das cidades. Estas festas de igreja são as quermesses aqui de São Paulo.

As festas de igreja festejavam o padroeiro do lugar, organizadas pelos festeiros do local. Ela era antecedida pelas novenas, cada uma dela com um “patrocinador” e comandada pelo capelão da igrejinha.

A festa iniciava com a missa, os foguetes, e todas as demonstrações de religiosidades.  E era quando o vigário, a que estava subordinada a capela, realizava a desobriga. Batizava e crismava as crianças, casava os ajuntados, realizava bênçãos. Tudo que precisasse de uma benção.  

A quermesse, na verdade, é o bazar ou a feira beneficente, com leilão de prendas, depois das cerimônias religiosas. E é aí que se desenvolvia a teojogatina. Todos os tipos de jogos. Um dos jogos era o leilão de prendas, mas a maior atração era a roleta (não maliciem).

Girava a roleta com toda a força e ela era girando, girando, até parar em um número. Era o momento de maior emoção entre os que compravam os cartões e os que torciam para alguém.
Os cerimoniais religiosos de uma festa de igreja tinham um caráter secundário. O que era importante era o congraçamento, os encontros, as fofocas. O churrasco comunitário que falei acima tinha a mesma finalidade.

Numa das festas havia uma galinha assada. Assada num forno a lenha. Deliciosa! Proseei com os meus botões e chegamos à conclusão que eu deveria “ganhar” aquela galinha. Estava “boludo”. Cheguei ao balcão e pedi: quero comprar a cartela inteira deste frango. A pessoa que me atendeu exclamou: BarbaridadE! Já vendi uma! O paranaense acentua o "e" final e fala de forma exclamativa. Então mE dá! (nesta época fui mandado - por castigo - trabalhar no Aeroporto de Afonso Pena, que fica no município de São José dos Pinhais. E o meu falar paranaense voltou).  Ma che barbaridade! Vai ter correr a roleta! (Ma che! Vício da italianada). 

A São José dos Pinhais é uma área de colonização italiana). Então roda logo! Quero comer esta galinha! A paúra começou a se avizinhar. Os meus botões me alertaram. Se il figlio de un porco tirar a galinha? Porco Dio. Putano! O cara que comprou o bilhete foi sorteado e eu, com 19 cartões, com 95 números, nas mãos e eu a ver navios. Barbaridade!

Provavelmente o sortudo era mais temente a Deus do que eu.