domingo, 4 de setembro de 2011

O espirro e a dentadura

Seu Vicente resolveu arrancar todos os seus dentes e colocar uma dentadura. Ele tinha que ir a uma festa onde ia aparecer então precisava estar com os azulejos em ordem. E foi ao meu tio:
- Juca me arranque todos estes dentes e coloque uma dentadura.
- É pouco tempo, Vicente, não dá. A gengiva vai murchar e você vai ter que fazer outra dentadura.
Isto faz tempo! Eu era um piazito pré-adolescente. Foi lá pela década de quarenta. Dá para sentir o drama de um tratamento odontológico numa pequena cidade do interior. A anestesia deixava a boca adormecida por todo o dia e a broca girava com o pedalar do dentista. O cérebro tremia. Literalmente.
Não teve jeito. Tio Juca teve que fazer a dentadura como o cunhado queria. Convencer cunhados não é fácil. Coitado do Vicente, Juca, você vai deixar que ele vá à festa com a boca deste jeito?
Naqueles antanhos não havia carro. Meu pai foi o primeiro caminhoneiro, um carroceiro promovido. Durante um ano o caminhão só andava para frente; imaginavam que fosse como carroça, que não andava de ré. Até que um dia ele deu uma cotovelada numa alavanca do volante, que até então ele não sabia a finalidade. Vai que mexer nisto vou estragar o caminhão? Ao arrancar o caminhão foi para trás e não para frente como se esperava. Foi um baita susto. E agora? Tenta daqui, tenta dali, e nada do caminhão ir para frente. Até que ele teve a ideia de dar uma cotovelada com o outro cotovelo. No sentido contrário. E o caminhão começou a andar para frente. E foi assim que meu pai e os morretenses descobriram que, diferente das carroças, os caminhões andavam para frente e para trás.  Meu pai contava que virou um herói. Livrou-se até das gozações por ter medo de sapos.
Tirando este caminhão, o que havia em Morretes eram carroças, toco-duro, aranhas e charretes. Numa comparação rústica, a carroça era o caminhão e o toco-duro era a picape leve daqueles tempos. Uma carroça com duas rodas e sem molejo. A charrete era a condução de passeio. Uma carroça que aproveitou a recente tecnologia automobilística. Da época. Um eixo com duas rodas de carro com pneus, molejo, um banco confortável e eu não sei por que, a preferência era por uma eguinha ligeira. A madrinha das tropas também era uma égua. A égua madrinha. Ela que dava o rumo para  a tropa. Se fosse potro,era para montaria.
Mas claro que também havia muitas éguas boas de cela. Nonno tinha uma égua que ninguém ganhava dela nas corridas de raia. E era boa de arreio na charrete.  Foi esta égua que foi buscar a parteira, Dona Margarida, quando eu nasci. Ela tinha um passo que era quase um galope. Eu ainda me lembro desta égua tordilha. Ela está nos meus lampejos de memória. Todos os dias nonno levava e trazia a minha mãe para trabalhar na cidade. Ela era professora.
A aranha era uma charrete com rodas de ferro. Ou seja, uma roda de madeira revestida por um aro de ferro.
Aos domingos, as carroças, os toco-duros, as aranhas e as charretes estacionavam em volta do morrinho da igreja. Todos com as suas roupas de missa. Alguns vinham a pé lá do Central, onde nasci. Eu morava no caminho do Central. Homens e mulheres vinham com as suas roupas de missa e os sapatos pendurados nos dedos. Quando chegavam às margens do valinho da química paravam, lavavam os pés e calçavam os sapatos. Seu De Rocco com a esposa  na frente, seguidos dos filhos, noras, netos, vizinhos, etc.
Quando eu já era adolescente fui assessor de cerimônias religiosas – eu e Valdinho éramos sacristãos privilegiados (eu já escrevi a este respeito). As figuraças eram o seu José De Rocco e o Sebastião Cavagnolli. Eles eram os responsáveis, um em cada lado da nave da igreja, em entoar o cantochão  Et cum spiritu tuo, em resposta ao Dominus vobiscum entoado pelo padre Camargo. Um dia perguntei para o seu De Rocco o significado daquelas palavras. Você sabe que eu não sei? É alguma coisa com espírito. Fui aprender o significado mais tarde, no ginásio. Padre era o nosso professor de latim. Eu e Valdinho sempre tínhamos boas notas.
Eu não me esqueci de seu Vicente. A sua condução era uma aranha e ele morava na Fortaleza, um dos núcleos de colonização da Nova Itália. Seu Domingos (Don Domenico) era o capo de lá. Pai do Vicente e sogro do tio Juca. Um dia, que seu Vicente não soube explicar, se era resfriado ou os pelos do nariz, começou a espirrar. E num dos espirros, o mais forte, a dentadura voou da sua boca para baixo da roda (de ferro) da aranha. Ficou em pedaços.  
E foi como tio Juca avisara... não lhe falei Vicente?...
Mas aí a gengiva já secara. Foi mais fácil fazer nova dentadura. Com menos sofrimento.

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