domingo, 11 de março de 2012

O galinheiro e a transa


Outro dia eu escrevi a respeito de uma festa de igreja. Escrever é prosear com lembranças de fatos da vida. E registrá-las.  Prosa puxa prosa; lembranças puxam lembranças. Escrever é montar imagens e em cada uma abrem-se janelas para outras lembranças. Como a que contarei a seguir.

A casa que descrevi, geminada com a da senhoria e com o terreno com a extensão da quadra, tinha-o dividido ao meio. A primeira parte dividida em dois lotes, um para casa; a segunda parte era uma horta, um passatempo da proprietária da casa. Havia, nesse contrato de locação uma espécie de um sistema de prestações. Um casal novo, ao locar a casa, deu segurança pessoal (companhia) e financeira (sobrevivência) e recebeu de volta a atenção, quase filial. Eram duas senhoras idosas - para os padrões de então. A filha, de 50 anos e tantos e a mãe de quase oitenta anos de idade. Dentre estas atenções, o acesso à horta. Era mais um acesso para passeio e admiração às verduras e legumes muito bem tratados e algumas frutas, pois todas as manhãs, quando as duas senhoras faziam as suas colheitas, traziam a “nossa parte”.

Nos fundos do lote da casa da senhoria havia um galinheiro. Completava a alimentação com carne e ovos. A metade da alimentação, ou talvez mais da metade, vinha do quintal.

Os gêneros alimentícios eram quase todos comprados nos armazéns de secos e molhados e vendidos a granel. Feijão, arroz, trigo, fubá, macarrão, erva. Parte do feijão era produzida na horta. Uma vida rural-urbana. A casa ficava numa rua paralela à praça da igreja matriz, distante uns 100 metros da igreja.

 Ao lado da casa da senhoria havia uma casa, com uma casinha (edícula) aos fundos. A casa era de madeira e a edícula de tijolos. Parte de sua parede era geminada com a parede da parte coberta do galinheiro, onde as galinhas ficavam recolhidas e onde estavam os ninhos para as galinhas botarem.

Os donos da casa vizinha estavam sempre ausentes. Eu não me lembro que os tenha visto alguma vez. Na edícula havia um quarto ocupado pelo Polaquinho, espécie de um guardião da casa. Este guardião deveria ser louro, talvez de origem polonesa, ou talvez nem fosse. No Paraná (do sul) polaco, polaca, são sinônimos de louros. Esta referência está fora do departamento de preconceitos.

Certa noite, que já passava da meia noite, mas ainda não era manhã, fomos chamados pelas donas da casa. Era uma daquelas noites “paradas”, sem vento, em que as folhas secas estalam alto ao serem pisadas. O céu apresentava-se sem nuvens, pontilhado de estrelas. Permitia ver Marte, o Cruzeiro do Sul, as Três Marias e todas as constelações e estrelas identificáveis a olho nu.

Os olhos e a voz das  mulheres demonstravam temor. “Acho que tem ladrão roubando galinhas; elas estão inquietas”. Roubos na horta e no galinheiro afetavam a sobrevivência, sem falar de acontecer numa comunidade em que até raposas em galinheiro era escândalo.

Valente como todo moço que ainda não chegara à metade dos “vintes”, recém-chegado de Mato Grosso, ansioso para voltar a usar a winchester 44 papo amarelo trazida de lá. Vou pegar este ladrão de galinha na ponta do pau de fogo, pensei. Tal qual um John Wayne, um Tom Mix, um Alan Ladd, heróis dos seriados nos cinemas do interior, antes se serem transformados em igrejas crentes, que animava a gurizada no "galinheiro" (galeria) do cinema do Nhozinho em Morretes. Exercitei o porta-gatilho como faziam estes heróis do bang-bang; carreguei-a e repeti a pantomima.  Colocava a Tropa de Elite nas chinelas. A juventude e o heroísmo se multiplicam.

Quando cheguei próximo de onde o barulho inquietava as galinhas, havia silêncio. Nisto um ruído e as galinhas começaram a se alvoroçar. Com toda a coragem que aquela carabina me proporcionava, lembrei que era um sargento, ensaiei aquela voz de comando de enquadrar recrutas e melhor que as vozes de esquerda, direita, meia volta, saiu a “saia daí e rápido!”. Os sargentos pé-de-poeiras ficariam enciumados  com tal voz de comando de um sargento radiotelegrafista. Nada. Novo ruído e nova queixa das galinhas. “Saia daí! Vou contar até três. Se não sair irá fogo!” As mulheres encolhidas (além da minha), quietas... Esperando começar a guerra!... “UM... DOIS... TRÊS...”  PÃÃÃÃ! Um estampido seco numa noite seca! Um grito se seguiu ao tiro: “NEM AQUI PODE!...” E um tropel. Ou dois. Sei lá. A velocidade era tanta. Nem o portãozinho de  entrada foi aberto. Fui verificar, estava trancado. O trabuco já estava pendurado no ombro, à bandoleira. Todo herói dorme o sono dos justos.

No dia seguinte comentei com um conhecido que havia espantado um ladrão de galinha. Ele deu uma risadinha e matou a charada. Ladrão de galinha, nada! Você espantou o Polaquinho. Ou alguém que ele deixou ir trepar naquela casinha. O pessoal usa aquela casinha pra comer a mulherada, você não sabia? A cidade toda sabia. Para o azar do Polaquinho e dos seus convidados, eu não sabia. Ninguém me avisara.

Enquanto morei lá as galinhas não mais foram incomodadas nos seus sonos.

Um comentário:

PattyMariah disse...

Imperdível.
Fiquei sua fã....
Bjo