sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

A chegada da cegonha

Certa noite o meu pai me acordou e falou: a cegonha está para chegar e ela não gosta de crianças por perto.  Fique no caminhão e cuide da sua irmã. Que cegonha chata! E onde já se viu, não gostar de crianças, se ela era a transportadora de crianças.  Esquisito!  O pai sabia das coisas. Fazendo as contas, eu tinha 4 anos e sete meses e a minha irmã, sob a minha tutela, 2 anos e quatro meses.

Era um caminhão marca International e tinha rádio. Meu pai ligou o rádio e eu até me esqueci da cegonha, pois comecei a procurar onde estavam aqueles homens e mulheres que estavam falando. Deveriam ser muito pequenos para caber naquela caixinha tão pequena. E falavam alto! Minha irmã, muito viva para os seus dois anos, também ficou curiosa. Procura daqui, procura dali, e nada de encontrar aquele pessoal que não parava de falar.

Quando me lembrava da visita da cegonha ia até a porta entreaberta da garagem e dava uma olha. Nada da cegonha e também não ouvia nada de conversa em casa. Mas vi dona Margarida chegar. Ela era a primeira madrinha de quase todas as crianças de Morretes. Talvez imaginasse que ela fosse uma espécie de agente da cegonha, pois já haviam me dito que o meu pai foi buscar dona Margarida quando nasci. Nonno tinha uma eguinha que ganhava todas as corridas nas raias de Morretes  e era uma boa troteadora na aranha (uma charrete com rodas de madeira e aro de ferro). Quando papai foi avisado que a cegonha estava para chegar deixou a eguinha preparada para ir até a cidade (eu nasci no Central, a uns 3 ou 4 quilômetros da cidade).

Eu não me lembro quando Marisa nasceu, mas o ritual deve ter sido o mesmo.

Foi uma noite trabalhosa e sem resultados: não encontrei aquele pessoal que tanto falava no caminhão e nada de ver a cegonha. Até que papai chegou. Minha irmã já havia dormido e papai me falou que a cegonha havia chegado silenciosamente e deixado mais uma irmãzinha. E nos levou dormir. Deixamos para ver a irmãzinha no dia seguinte, pois ela já estava dormindo.

Passados dois anos e meio cheguei em casa e me avisaram que a cegonha havia chegado e deixado uma irmã. Fiquei chateado, pois pela segunda vez esta cegonha chega em casa, deixa outra irmã, e nada de eu me encontrar com ela. Deveria haver algum acordo da cegonha, ou do dono do cegonhal, com a dona Margarida, pois quando alguém recebia a visita da cegonha, lá estava ela, Dona Margarida. Como eu já desconfiava, como comentei acima.

Este negócio da cegonha me deixava ensimesmado. Eu não conseguia entender onde ia parar a barriga da mulher que recebia a cegonha. Estava barriguda e logo após sem a barriga. Falavam uma porção de coisas, mas nada daquilo me convencia. Para me convencer teria que ver a cegonha.

Até que uma vez cheguei na oficina em que papai, Giocondo e Joaquinzinho consertavam os carros, num  barracão cedido por tio João Sotta, escutei um papo que me deixou atrapalhado de vez. Falavam a respeito de um rapaz havia “comido” uma moça e ela estava esperando a cegonha.  E aprendi outra palavra: prenha. “A moça ficou prenha!”. Comido? Como? Quando pedi explicações levei um fora, que aquilo não era conversa para criança.

Eu e Marisa costumávamos estudar pela manhã e minha mãe lecionava à tarde. Eram momentos agradáveis de “pesquisa”, isto é, mexer nos espaços proibidos. Uma vez encontramos um revolver de meu pai e corremos atrás de Isabel. Ela se assustou, saiu correndo para a rua e nós atrás avisando para não se assustar, mas ela não nos escutava de tão apavorada. Encontrávamos muitas coisas interessantes. Os pais sempre têm coisas interessantes que escondem dos filhos.

Como sabemos, não existia e ainda não existe educação sexual. Quando se fala do assunto é por metáforas e as crianças não entendem nada. Inclusive os professores.

Na década de setenta um grupo de alunos me mostrou, orgulhoso, um trabalho sobre educação sexual, que falava de gestação. Aparecia o galo “cobrindo” a galinha, o porco com a porca, o boi com a vaca, o cão com a cadela, o cavalo com a égua e, por fim, o homem e a mulher... deitados na cama, cobertos lado a lado, de barriga para cima. Imagine na década de 40.

Numa das pesquisas vespertinas encontrei um livro de sexualidade, talvez escrito na década de trinta ou na de quarenta. Era bem ilustrado e mostrava, em detalhes, o processo de gestação. Chamei Marisa para ela ver que não havia nada de cegonha. Quando a minha mãe chegou da escola cobrei uma explicação. O livro sumiu.

E foi assim que descobri que a história da cegonha era uma estória.




2 comentários:

Blogguinho disse...

Encantadora, Mauro. Encantadora a sua história da estória da cegonha.

Vania Serôa disse...

Que gostoso de ler! Parabéns!!