Quem nasceu e viveu em áreas de colonização vive numa
mistura danada. Uma mistura étnica. Eu tinha o nonno e a nonna do
lado do pai e vovô e vovó do lado da mãe. Se bem que a minha avó era filha de
um italiano. Eu vou falar do meu avô, pai de minha mãe, Francisco Serôa da
Motta Sobrinho. Falando dele, falarei da minha avó, Maria Carmela Sentone da
Motta. Mas não dará para contar numa memória só.
Vovô, conhecido como seu Serôa,
era lavrador, poeta, autor de inflamados discursos... Um autodidata de grande
inteligência. Era surpreendente falar com ele, de ler as cartas de amor
trocadas com a minha avó antes de casarem, de ler as suas poesias, as suas
cartas, mesmo as cartas, nas quais brigava com o seu irmão Candinho.
O meu avô antecedeu os ambientalistas. Ele foi um
ambientalista antes de “inventarem” esta palavra. No quintal da sua casa, no
alto do morro do Petinga, havia vários coxinhos com quirera para os pássaros,
povoado por canários da terra; havia bananas espetadas em varas de bambu para
os sabiás, tiés do vários tipos e outros pássaros que por ali passassem. Falava
em equilíbrio ecológico; aí de quem tocasse nas cobras caninanas que passeavam
até pelo teto da sua casa. Era comum assistir as cobras trocarem de pele e a
pele velha cair sobre quem por ali estivesse.
A casa era de madeira sem sarrafos para fechar as
frestas entre as tábuas. A sua cobertura era de zinco. O Petinga,
cercado de morros, era muito quente, mas a casa sempre tinha uma temperatura
agradável, pois parte brilhante do zinco faz com que os raios do sol reflitam,
impedindo que o seu calor seja absorvido. Quando estou no carro em dia de
chuva, o som dos pingos sobre o teto me faz lembrar a casa de vovô.
Era engenhoso. A água para beber vinha do morro por
uma caneleta e para proteger a limpidez da água plantava agrião na sua
extensão. No final havia uma tubulação de tronco de jiçara para a utilização da
água. Uma derivação que ia até perto da casa de onde se pegava água para
consumo. A tubulação era sustentada por forquilhas feitas de troncos de
árvores, principalmente de goiabeira.
Ao lado do caminho que ligava a casa à bica, em que
jorrava a água vinda através da caneleta, havia um tanque, feito a muque por
vovô e pelos meus dois tios, Almir (Mimo) e Rubens (Rubico). No fundo do poço
havia uma tubulação de manilha com uma tampa de cimento, manuseada por uma
manivela. A água captada do fundo do tanque girava a roda d’água da fabrica de
farinha de mandioca. Girava o ralador e as pás do forno de torrefação da
farinha.
Havia um sistema de correia e polias para funcionar
um só instrumento ou para fazer girar mais de um.
Enquanto que nas outras fabriquetas de mandioca de
Morretes ralava-se a mandioca a mão e a torrefação em tachos, na de vovô o
ralador e o forno de torrefação eram acionados a água.
Do ralador, para a prensa. O líquido que
escorre da massa de mandioca ralada quando imprensada é conhecido como veneno
da mandioca, o ácido prússico, de alta toxidade, mas muito volátil. Em
poucas horas perde a toxidade e se torna a matéria prima para fazer um polvilho
que vovó aproveitava para fazer bolinhos. Para evitar que a criação viesse
ingerir este líquido e para aproveitá-lo, vovô construiu uma tubulação e um
tanque raso para que a evaporação do ácido fosse mais rápida.
A mandioca bem prensada ia para a torrefação.
Acendia-se o fogo e numa chapa côncava a farinha era mexida com pás que giravam
impulsionadas pela roda d’água.
A minha avó quis comprar um rádio para acompanhar
as novelas, quando o Direito de Nascer era irradiado pela Rádio Nacional do Rio
de Janeiro. Meu avô comprou uma rádio à bateria e com o meu tio Almir montaram
um carregador de bateria com um alternador de automóvel girado pela mesma roda d’água.
E a minha avó se deliciava com as proezas de Albetinho Limonta e demais
personagens.
Esse rádio foi o motivador para que o meu tio Almir
fizesse um curso de radio técnica por correspondência numa escola
norte-americana, a National School, que ministrava cursos em português.
E foi assim que a eletricidade gerada por eles mesmos começou a chegar à
sua casa.
Vovô faleceu em dezembro de 1958, dois anos e meio
depois do falecimento da minha mãe.
Este é um rápido perfil de um homem, que para
muitos, era uma contradição. Um homem tão inteligente, diziam, morando lá no
alto daquele morro. Aquele morro era a sua vida; foi ali que ele encontrou lá
pelos idos de 1915, quando foi ver as terras, um pedaço de jornal com a
manchete: “O SEU LUGAR É AQUI”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário