sábado, 23 de agosto de 2014

O meu avô Serôa

Quem nasceu e viveu em áreas de colonização vive numa mistura danada. Uma mistura étnica. Eu tinha o nonno e a nonna do lado do pai e vovô e vovó do lado da mãe. Se bem que a minha avó era filha de um italiano. Eu vou falar do meu avô, pai de minha mãe, Francisco Serôa da Motta Sobrinho. Falando dele, falarei da minha avó, Maria Carmela Sentone da Motta. Mas não dará para contar numa memória só.

Vovô, conhecido como seu Serôa, era lavrador, poeta, autor de inflamados discursos... Um autodidata de grande inteligência. Era surpreendente falar com ele, de ler as cartas de amor trocadas com a minha avó antes de casarem, de ler as suas poesias, as suas cartas, mesmo as cartas, nas quais brigava com o seu irmão Candinho.

O meu avô antecedeu os ambientalistas. Ele foi um ambientalista antes de “inventarem” esta palavra. No quintal da sua casa, no alto do morro do Petinga, havia vários coxinhos com quirera para os pássaros, povoado por canários da terra; havia bananas espetadas em varas de bambu para os sabiás, tiés do vários tipos e outros pássaros que por ali passassem. Falava em equilíbrio ecológico; aí de quem tocasse nas cobras caninanas que passeavam até pelo teto da sua casa. Era comum assistir as cobras trocarem de pele e a pele velha cair sobre quem por ali estivesse.

A casa era de madeira sem sarrafos para fechar as frestas entre as tábuas. A sua cobertura era de zinco.  O Petinga, cercado de morros, era muito quente, mas a casa sempre tinha uma temperatura agradável, pois parte brilhante do zinco faz com que os raios do sol reflitam, impedindo que o seu calor seja absorvido. Quando estou no carro em dia de chuva, o som dos pingos sobre o teto me faz lembrar a casa de vovô.

Era engenhoso. A água para beber vinha do morro por uma caneleta e para proteger a limpidez da água plantava agrião na sua extensão. No final havia uma tubulação de tronco de jiçara para a utilização da água. Uma derivação que ia até perto da casa de onde se pegava água para consumo. A tubulação era sustentada por forquilhas feitas de troncos de árvores, principalmente de goiabeira.

Ao lado do caminho que ligava a casa à bica, em que jorrava a água vinda através da caneleta, havia um tanque, feito a muque por vovô e pelos meus dois tios, Almir (Mimo) e Rubens (Rubico). No fundo do poço havia uma tubulação de manilha com uma tampa de cimento, manuseada por uma manivela. A água captada do fundo do tanque girava a roda d’água da fabrica de farinha de mandioca. Girava o ralador e as pás do forno de torrefação da farinha.

Havia um sistema de correia e polias para funcionar um só instrumento ou para fazer girar mais de um.

Enquanto que nas outras fabriquetas de mandioca de Morretes ralava-se a mandioca a mão e a torrefação em tachos, na de vovô o ralador e o forno de torrefação eram acionados a água.

Do ralador, para a prensa.  O líquido que escorre da massa de mandioca ralada quando imprensada é conhecido como veneno da mandioca, o ácido prússico, de alta toxidade, mas muito volátil. Em poucas horas perde a toxidade e se torna a matéria prima para fazer um polvilho que vovó aproveitava para fazer bolinhos. Para evitar que a criação viesse ingerir este líquido e para aproveitá-lo, vovô construiu uma tubulação e um tanque raso para que a evaporação do ácido fosse mais rápida.

A mandioca bem prensada ia para a torrefação. Acendia-se o fogo e numa chapa côncava a farinha era mexida com pás que giravam impulsionadas pela roda d’água.

A minha avó quis comprar um rádio para acompanhar as novelas, quando o Direito de Nascer era irradiado pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Meu avô comprou uma rádio à bateria e com o meu tio Almir montaram um carregador de bateria com um alternador de automóvel girado pela mesma roda d’água. E a minha avó se deliciava com as proezas de Albetinho Limonta e demais personagens.

Esse rádio foi o motivador para que o meu tio Almir fizesse um curso de radio técnica por correspondência numa escola norte-americana, a National School, que ministrava cursos em português. E foi assim que a eletricidade gerada por eles mesmos começou a chegar à sua casa.

Vovô faleceu em dezembro de 1958, dois anos e meio depois do falecimento da  minha mãe.


Este é um rápido perfil de um homem, que para muitos, era uma contradição. Um homem tão inteligente, diziam, morando lá no alto daquele morro. Aquele morro era a sua vida; foi ali que ele encontrou lá pelos idos de 1915, quando foi ver as terras, um pedaço de jornal com a manchete: “O SEU LUGAR É AQUI”.

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