sábado, 23 de agosto de 2014

Lampejos de memória

Lampejo, diz o dicionário, é uma manifestação rápida e/ou brilhante duma ideia; (..) um clarão ou brilho repentino; (uma) faísca, fagulha, centelha, chispa”. Lampejo de memória é aquela lembrança rápida, clara como uma centelha, rápida como uma faísca. Eu tenho estes lampejos de memória de nonno.
 
Eu tinha três anos, nove meses e cinco dias quando nonno faleceu. Muito pequeno para me lembrar dele, mas estes lampejos são desta idade para menos. Para que estas lembranças ficassem marcadas nonno deve ter sido muito importante para mim.
 
Ele e nonna cederam o quarto deles para os meus pais morarem lá na época da gravidez de minha mãe; ali nasceria o primeiro filho do filho caçula. Nonno levava a minha mãe para cidade para lecionar e voltava buscá-la. Estes foram os meus primeiros momentos de vida ao lado dos meus avós paternos.
 
Há um lampejo, acho que o de menor idade, em que eu estava na charrete (ou “aranha” – uma charrete com rodas de madeira e aro de ferro), sentado entre nonno e a minha mãe, saindo da estradinha do engenho do Central, entrando na estrada principal, que nos levaria à cidade. O cavalo assustou-se por alguma coisa, saiu da estrada. Minha mãe gritou e ele disse: “Não se assuste, Dulce. Não foi nada”. Corte! Um corte que veio até hoje.
 
Num outro lampejo eu entrava na sala de jantar e nonno estava sentado numa mesa redonda, pequena para a sala, com uma pequena tigela com vinho; ele picava pão e mergulhava no vinho. Não sei se foi ele que falou que havia vinho na tigela. Bem mais tarde, já adulto, falando a respeito com o meu pai, ele me falou deste hábito de nonno, de fazer sopa de pão com vinho numa pequena tigela.

 Um dos lampejos aconteceu na casa construída pelo meu pai e que existe até hoje. Nonno já demonstrava estar doente. Eu estava sentado na escada da entrada da varanda, chegaram ele e nonna que iam da cidade para o Central. Pararam defronte de casa. Demonstrando fraqueza, Nonno desceu da charrete, mas não se atreveu subir os degraus da varanda. Ficou conversando comigo apoiado na sua bengala. O lampejo termina antes de nonna sair para retornarem ao Central.
 
Num outro lampejo eu me vejo no quarto dele, doente e de cama. Uma visão rápida.

 Numa manhã, o meu primo Carlito, filho do tio Jango, chegou em casa. Ele deveria ter uns 10 ou 11 anos. Falou alguma coisa e meu pai se apressou em se arrumar e me arrumar. Pegou a ramona (Chevrolet Ramona de 1927), um caminhãozinho com cabine de madeira e sem portas. Sentou-me no banco e falou para que Carlito ficasse no para-lama, fechando a entrada da cabine. Não me lembro se a minha mãe já havia ido ou foi depois.
 
Havia movimento na frente da casa e um ataúde no centro da sala da frente. Colocaram-me no colo, acho para o ver o nonno pela última vez, mas eu não me lembro de o ter visto. Vi algo que não parecia ser ele. Há um pequeno corte e me vejo sendo colocado no colo de alguém na janela. Dali pude ver o féretro na estrada, ao longe. Houve uma sensação, não sei se daquele momento, ou uma sensação que cresceu com a idade, de algo que perdia; de uma última visão. É uma lembrança acompanhada de um nó na garganta e de os olhos quererem marejar. 

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