sábado, 23 de agosto de 2014

Morretes, os sinos e os sineiros (*)

Cada vez que chego a Morretes, sinto nos meus ouvidos os sons dos sinos da matriz: quando tristes, entristeciam os morretenses; quando alegres, alegrava a todos.  Cada “música”, isto é, cada batida, identificava uma atividade religiosa, mas também havia uma batida para a comunidade.
Sou de uma geração que nasceu e se criou ouvindo os sinos da Igreja Matriz. Eu fui um dos sineiros da Igreja.
Na torre da Matriz havia quatro sinos, numerados do menor ao maior, em primeiro, segundo, terceiro e quarto. Cada sineiro se especializava num deles. Os primeiro e segundo sinos eram os “de repique” e eram tocados por um só sineiro e dava o ritmo e o quarto fazia um acompanhamento, surdo, e era o responsável pelas e emoções. Pelas tristezas e pelas alegrias. O terceiro intermediava o “diálogo” dos sinos menores com o “solo” do quarto. Neste momento a cidade ficava alerta: alguém havia falecido. Quem? Logo a notícia se espalhava. E assim as batidas anunciavam um acontecimento, uma atividade. Era a forma de como as informações chegavam aos moradores de uma cidade com cerca de cinco mil habitantes.

Quem eram os sineiros? Eram meninos no início da sua adolescência. Coroinhas. Sacristãos, como eram chamados.  Mas não eram todos que ficavam com a chave da porta da torre, como não era qualquer um que “tocava sino”. Para tal, teria que ter a autorização do responsável, alguém de confiança do padre. Ou do capelão, caso do Roberto França, na igreja de São Benedito.

Os mais experientes treinavam os novos. Os antigos, já adultos, eram citados como exemplo pelos “instrutores” aos aprendizes. Os mais citados, na época, eram Osman de Oliveira e Airton Onoles. Havia o Ari Bicudo e alguns que no momento não lembro outros nomes, mas sempre havia uma dupla ou um trio. A dupla que mais se destacava era a “especializada” nos dois sinos menores e no maior. Por muito tempo eu fiz parceria com Valdinho Colodel. Ele nos dois menores e eu no quarto sino. 

Osman e Airton, até onde alcança a minha memória, foram os últimos coroinhas (sacristãos) do Pe. Saveniano. Eu e Valdinho fomos do primeiro grupo de coroinhas do Pe. Camargo. 

Relembrando, a partir de hoje, o Pe. Camargo fez  tudo para apagar da memória as lembranças do seu antecessor.  

Os coroinhas tinham outras responsabilidades na Igreja e por isto eram os que mais se destacavam como sineiros. Não sei nas gerações passadas, mas o padre nos remunerava. Também éramos sineiros da Igreja de São Benedito, que tinha como capelão o Sr. Roberto França.

Muitas vezes a dupla estava livre para bater sino. Quando somente um batia o sino, repicava os sinos menores com as mãos e o maior com a corda do badalo amarrada num dos pés.

A sonoridade antiga que sinto nos ouvidos contrastava com a batida monocórdica atual. Numa das minhas visitas a Morretes convidei Valdinho para transmitirmos o nosso conhecimento para os meninos e meninas atuais. Não foi possível porque, segundo lhe informaram, havia mais de um sono rachado. Deitado de costa no chão da torre, é claro.

Faço um convite aos morretenses para arrecadar fundos para recuperar os sinos; eles são da comunidade. Não sei se este convite ainda tem significado sete anos depois que publiquei este texto.


(*) – Publicado, originalmente, em Morretes NotíciasEdição nº 2, janeiro de 2007.

Lampejos de memória

Lampejo, diz o dicionário, é uma manifestação rápida e/ou brilhante duma ideia; (..) um clarão ou brilho repentino; (uma) faísca, fagulha, centelha, chispa”. Lampejo de memória é aquela lembrança rápida, clara como uma centelha, rápida como uma faísca. Eu tenho estes lampejos de memória de nonno.
 
Eu tinha três anos, nove meses e cinco dias quando nonno faleceu. Muito pequeno para me lembrar dele, mas estes lampejos são desta idade para menos. Para que estas lembranças ficassem marcadas nonno deve ter sido muito importante para mim.
 
Ele e nonna cederam o quarto deles para os meus pais morarem lá na época da gravidez de minha mãe; ali nasceria o primeiro filho do filho caçula. Nonno levava a minha mãe para cidade para lecionar e voltava buscá-la. Estes foram os meus primeiros momentos de vida ao lado dos meus avós paternos.
 
Há um lampejo, acho que o de menor idade, em que eu estava na charrete (ou “aranha” – uma charrete com rodas de madeira e aro de ferro), sentado entre nonno e a minha mãe, saindo da estradinha do engenho do Central, entrando na estrada principal, que nos levaria à cidade. O cavalo assustou-se por alguma coisa, saiu da estrada. Minha mãe gritou e ele disse: “Não se assuste, Dulce. Não foi nada”. Corte! Um corte que veio até hoje.
 
Num outro lampejo eu entrava na sala de jantar e nonno estava sentado numa mesa redonda, pequena para a sala, com uma pequena tigela com vinho; ele picava pão e mergulhava no vinho. Não sei se foi ele que falou que havia vinho na tigela. Bem mais tarde, já adulto, falando a respeito com o meu pai, ele me falou deste hábito de nonno, de fazer sopa de pão com vinho numa pequena tigela.

 Um dos lampejos aconteceu na casa construída pelo meu pai e que existe até hoje. Nonno já demonstrava estar doente. Eu estava sentado na escada da entrada da varanda, chegaram ele e nonna que iam da cidade para o Central. Pararam defronte de casa. Demonstrando fraqueza, Nonno desceu da charrete, mas não se atreveu subir os degraus da varanda. Ficou conversando comigo apoiado na sua bengala. O lampejo termina antes de nonna sair para retornarem ao Central.
 
Num outro lampejo eu me vejo no quarto dele, doente e de cama. Uma visão rápida.

 Numa manhã, o meu primo Carlito, filho do tio Jango, chegou em casa. Ele deveria ter uns 10 ou 11 anos. Falou alguma coisa e meu pai se apressou em se arrumar e me arrumar. Pegou a ramona (Chevrolet Ramona de 1927), um caminhãozinho com cabine de madeira e sem portas. Sentou-me no banco e falou para que Carlito ficasse no para-lama, fechando a entrada da cabine. Não me lembro se a minha mãe já havia ido ou foi depois.
 
Havia movimento na frente da casa e um ataúde no centro da sala da frente. Colocaram-me no colo, acho para o ver o nonno pela última vez, mas eu não me lembro de o ter visto. Vi algo que não parecia ser ele. Há um pequeno corte e me vejo sendo colocado no colo de alguém na janela. Dali pude ver o féretro na estrada, ao longe. Houve uma sensação, não sei se daquele momento, ou uma sensação que cresceu com a idade, de algo que perdia; de uma última visão. É uma lembrança acompanhada de um nó na garganta e de os olhos quererem marejar. 

O meu avô Serôa

Quem nasceu e viveu em áreas de colonização vive numa mistura danada. Uma mistura étnica. Eu tinha o nonno e a nonna do lado do pai e vovô e vovó do lado da mãe. Se bem que a minha avó era filha de um italiano. Eu vou falar do meu avô, pai de minha mãe, Francisco Serôa da Motta Sobrinho. Falando dele, falarei da minha avó, Maria Carmela Sentone da Motta. Mas não dará para contar numa memória só.

Vovô, conhecido como seu Serôa, era lavrador, poeta, autor de inflamados discursos... Um autodidata de grande inteligência. Era surpreendente falar com ele, de ler as cartas de amor trocadas com a minha avó antes de casarem, de ler as suas poesias, as suas cartas, mesmo as cartas, nas quais brigava com o seu irmão Candinho.

O meu avô antecedeu os ambientalistas. Ele foi um ambientalista antes de “inventarem” esta palavra. No quintal da sua casa, no alto do morro do Petinga, havia vários coxinhos com quirera para os pássaros, povoado por canários da terra; havia bananas espetadas em varas de bambu para os sabiás, tiés do vários tipos e outros pássaros que por ali passassem. Falava em equilíbrio ecológico; aí de quem tocasse nas cobras caninanas que passeavam até pelo teto da sua casa. Era comum assistir as cobras trocarem de pele e a pele velha cair sobre quem por ali estivesse.

A casa era de madeira sem sarrafos para fechar as frestas entre as tábuas. A sua cobertura era de zinco.  O Petinga, cercado de morros, era muito quente, mas a casa sempre tinha uma temperatura agradável, pois parte brilhante do zinco faz com que os raios do sol reflitam, impedindo que o seu calor seja absorvido. Quando estou no carro em dia de chuva, o som dos pingos sobre o teto me faz lembrar a casa de vovô.

Era engenhoso. A água para beber vinha do morro por uma caneleta e para proteger a limpidez da água plantava agrião na sua extensão. No final havia uma tubulação de tronco de jiçara para a utilização da água. Uma derivação que ia até perto da casa de onde se pegava água para consumo. A tubulação era sustentada por forquilhas feitas de troncos de árvores, principalmente de goiabeira.

Ao lado do caminho que ligava a casa à bica, em que jorrava a água vinda através da caneleta, havia um tanque, feito a muque por vovô e pelos meus dois tios, Almir (Mimo) e Rubens (Rubico). No fundo do poço havia uma tubulação de manilha com uma tampa de cimento, manuseada por uma manivela. A água captada do fundo do tanque girava a roda d’água da fabrica de farinha de mandioca. Girava o ralador e as pás do forno de torrefação da farinha.

Havia um sistema de correia e polias para funcionar um só instrumento ou para fazer girar mais de um.

Enquanto que nas outras fabriquetas de mandioca de Morretes ralava-se a mandioca a mão e a torrefação em tachos, na de vovô o ralador e o forno de torrefação eram acionados a água.

Do ralador, para a prensa.  O líquido que escorre da massa de mandioca ralada quando imprensada é conhecido como veneno da mandioca, o ácido prússico, de alta toxidade, mas muito volátil. Em poucas horas perde a toxidade e se torna a matéria prima para fazer um polvilho que vovó aproveitava para fazer bolinhos. Para evitar que a criação viesse ingerir este líquido e para aproveitá-lo, vovô construiu uma tubulação e um tanque raso para que a evaporação do ácido fosse mais rápida.

A mandioca bem prensada ia para a torrefação. Acendia-se o fogo e numa chapa côncava a farinha era mexida com pás que giravam impulsionadas pela roda d’água.

A minha avó quis comprar um rádio para acompanhar as novelas, quando o Direito de Nascer era irradiado pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Meu avô comprou uma rádio à bateria e com o meu tio Almir montaram um carregador de bateria com um alternador de automóvel girado pela mesma roda d’água. E a minha avó se deliciava com as proezas de Albetinho Limonta e demais personagens.

Esse rádio foi o motivador para que o meu tio Almir fizesse um curso de radio técnica por correspondência numa escola norte-americana, a National School, que ministrava cursos em português. E foi assim que a eletricidade gerada por eles mesmos começou a chegar à sua casa.

Vovô faleceu em dezembro de 1958, dois anos e meio depois do falecimento da  minha mãe.


Este é um rápido perfil de um homem, que para muitos, era uma contradição. Um homem tão inteligente, diziam, morando lá no alto daquele morro. Aquele morro era a sua vida; foi ali que ele encontrou lá pelos idos de 1915, quando foi ver as terras, um pedaço de jornal com a manchete: “O SEU LUGAR É AQUI”.