quinta-feira, 21 de outubro de 2010

A vida, a morte e as visagens.




Todos (ou quase todos) os povos constroem um mundo sobrenatural paralelo e complementar ao mundo natural ou físico em que vivemos. O mundo sobrenatural é construído como um modelo e uma explicação deste nosso mundo. Lá está aquele que “nos criou”, o nosso herói civilizador, que no nosso mundo ocidental chamamos de Deus. Criamos um mundo sobrenatural para que explique o que antecede e o que sucede a este nosso mundo natural.


Os índios guarani, por exemplo, dizem que quando nasce uma criança ela “é governada” por um espírito telúrico. A partir do momento em que começa a compreender o mundo em sua volta, significa que uma alma divina, Ñé é, a fala, começa a se manifestar, “tomando conta do corpo”.  Quando o indivíduo morre o espírito telúrico (Angüery) fica por aqui e a alma divina volta de onde veio. A sua volta, porém, é cheia de peripécias, como uma corrida de obstáculos.

Há até uma encruzilhada, reedição do caminho largo e do caminho estreito da crença de algumas denominações evangélicas cristãs. O caminho largo é o caminho da “perdição” e o estreito da bem-aventurança. Há um “guarda” para dizer qual caminho deve ser tomado. É a ideia da dualidade da alma.

O que interessa para nós é a crença de que o mundo natural (ou físico) é povoado por seres não naturais, habitantes de um dos inúmeros níveis do mundo sobrenatural. Aqui, a dualidade mundo natural, ou profano, e o mundo sobrenatural ou sagrado. Os seres não naturais são classificados desde os mais impuros, as  almas penadas, até os mais puros, relacionados com o paraíso, onde está Deus, foco principal das crenças.

Mary Douglas, uma antropóloga britânica nos ensinou que o corpo é a metáfora da sociedade. Construímos a nossa sociedade a partir das nossas compreensões a respeito do nosso corpo. Da mesma forma, podemos dizer que o mundo natural é a metáfora do mundo sobrenatural. O que temos aqui tem lá de forma organizada.

O nascimento e a morte são os pontos de contato entre o mundo natural e o mundo sobrenatural (ou sagrado), respectivamente de alegria e de tristeza. Estes momentos são conceituados e re-conceituados teologicamente pelas mais diversas denominações religiosas, como tentativas de uniformização de ideias religiosas.

A morte é o nosso grande problema. Cada um de nós é uma dualidade: ser biológico e ser social. O ser biológico é o que fenece; o ser social sobrevive. Continua sendo o pai, a mãe, o filho, a filha, o historiador, etc. Segundo as nossas crenças quem sobrevive é a alma. Ou melhor, a imaterialidade sobrevive ao corpo e vai viver no mundo sagrado.

Este mundo sobrenatural – o sagrado - é obra nossa e temos para com ele uma atitude dúbia e contraditória: ao mesmo tempo em que nos consideramos suas criaturas, agimos como se o mundo sagrado fosse nossa criatura. Criamos rezas, ritos, etc., para sujeitá-lo e moldá-lo aos nossos interesses. Criamos as nossas crenças e elegemos representantes para que nos defendam delas. Como a complexidade do mundo é muito grande e vai além do conhecimento para ordená-lo, passamos a considerar como uma manifestação do mundo sobrenatural tudo aquilo que acontece e não conhecemos.  

Elegemos locais de segurança e locais abertos às manifestações sobrenaturais.

As Igrejas, que reúnem os administradores das relações (padres, pastores, etc.) entre estes dois mundos, são locais seguros. Valdinho contou que um dia foi abrir a igreja, escutou barulhos e correu para o Pe. Camargo:

 - seu Padre, tem fantasmas atrás do altar!

 - Ora, meu filho, fantasma não entra na casa de Deus, respondeu o Padre no seu mais alto saber teológico. Eram ratos, disseram-lhe.

Os espaços do lado de fora da Igreja são os espaços de livre manifestação dos fantasmas...  

Os fantasmas, contam os entendidos, têm uma fisionomia esquelética. Uma vez eu vi um homem com fisionomia de fantasma. Estava defronte à porta da torre. Foi logo após de ter quase incendiado um altar. Seria castigo? Mas do lado de fora da igreja. Disseram-me depois que era um tuberculoso. Nunca mais o vi. Será que alguém viu o “fantasma” que eu vi? Ou será que eu vi algum fantasma?

Os fantasmas não andam sob a luz do sol. Começam a aparecer quando o sol ultrapassa o poente. Meu pai foi muito namorador, mas deixava claro que isto era antes de conhecer a minha mãe. Tinha uma namorada no Porto de Cima (distrito de Morretes) e voltava antes da velinha aparecer na reta (de 6 km que libava o Porto com a cidade).

Numa determinada noite a eguinha estava passarinheira. Nunca fora. Era rápida e boa de raia. Não havia parelha para ela. Mas naquele dia não sentia as cócegas das esporas e começava corcovear. Até que ele viu a vela acesa seguir o seu rumo. Nem sei se ele deixou de namorar no Porto, ou mudou o horário para não andar à noite.

...

O cemitério é um local aberto e livre para as manifestações fantasmagóricas.

O cemitério de Morretes foi iluminado e não havia fantasma que se atrevesse a aparecer com tantas luzes. Agora nem tanto, pois roubaram alguns holofotes. Bom para alguns fantasmas aparecerem.

Valdinho contou no almoço dos adolescentes do início da década de 50, que o filho de um nosso amigo comum, foi ao Central e voltou ao anoitecer. No lusco-fusco, acabou a gasolina defronte ao Cemitério. Ao descer do carro olhou para trás viu uma fantasminha pré-adolescente dentro do cemitério, com o rosto encostado nas grades, olhando para fora. Quando ele ia iniciar a carreira, deixando carro e tudo mais para trás, notou que a menina não era fantasma, mas acompanhante de um grupo de umbandista que fazia despacho no cruzeiro. O cruzeiro é uma cruz no centro do cemitério onde as pessoas ascendem velas para as almas e para os seus santos de devoção.

O rapaz recomendou que antes de correr procurasse  observar se havia motivos para uma desabalada carreira...

Mas nem todos têm tempo para isto. Foi o caso de Hamilton Faria desandou a correr de uma “visagem”. Mas também não era fantasma. Marquinhos costumava ir ao cemitério à noitinha quando chegava de Curitiba. Horário que Hamilton voltava da Usina, onde trabalhava. Em uma de suas passagens foi abordado por alguém que lhe “pediu fogo”. Era para acender as velas para poder sair do cemitério. Até então nunca correra com tanta velocidade. Era uma das brincadeiras de Marquinhos.

Como vemos, nem sempre há tempo para conhecer os motivos. O medo de visagens é maior que tudo. Beta que conte.

Eu fui criado no início da estrada do Central, que alguns chamavam de Rua do Cemitério. As mulheres das cidades pequenas colocam a ida ao cemitério como uma das suas obrigações semanais. Para evitar a canícula morretense iam bem cedo ou à tardinha. Nós, moradores da rua, conhecíamos o horário de cada uma delas. Beta ia à tardinha.

O perigo para as visitantes da tarde era não sentir o tempo passar e o zelador fechar o cemitério. Naquele tempo, as únicas luzes do cemitério eram as velas deixadas pelas beatas ou o fogo fátuo. E como os fantasmas gostam de se manifestar no escuro...

As visitantes costumeiras tinham uma “rota de fuga”: os ferros soltos do gradil do cemitério para o caso de o zelador fechar os portões do cemitério.  Beta, ao invés de usar esta “saída” preferiu sair pela fresta deixada pela corrente que fechava o portão. Ficou presa. Já havia escurecido e com a roupa presa não conseguia se movimentar. Quando ouvia passos ou via algum vulto de passantes, pedia socorro.

- por favor, me tire daqui... Estou presa, quero sair daqui dentro!...

Quem ia se aventurar a soltar um fantasma? “Pernas para que te quero” era a senha para a corrida.

Cansada e amedrontada, com a sua voz enfraquecida, seus apelos se confundiam como a voz das almas penadas. Todas as mães que se prezam imitam a voz de alma penada para aquietar os seus filhos. Assim, quando as pessoas ouviam Beta pedir para sair do cemitério, com a voz já enfraquecida, fugiam em desabalada carreira.

Beta era tida como a cronista da cidade. Do seu posto no peitoril da janela, sabia o que acontecia em Morretes. Naquele entardecer Beta não apareceu na janela, como era seu costume. O que acontecera? Saíram à sua procura. Lá pelas nove da noite encontraram-na presa no portão Cemitério.

Por que não pediu ajuda de alguém, perguntaram-me? Eu pedia, mas os lazarentos saíam correndo. Nem uma alma de Deus me ajudou a sair...

O medo das almas penadas, de fantasma é muito grande.

Obs: No sábado, dia 16, data do centenário de nascimento da minha mãe, fui ao cemitério e passei pela sepultura de Beta. Resolvi republicar este texto em homenagem à ela, e com ela  relembro todos os parentes, amigos e conhecidos que nos deixaram.

sábado, 16 de outubro de 2010

Morretense paranalista



Fiquei três anos e dez meses sem ir a Morretes. Tenho um compromisso com os amigos – ou melhor, é um compromisso nosso – de formatura do ginásio de nos encontrarmos em dezembro para um almoço. Duas vezes proibido pelo trabalho e da última vez pelo médico. Mas agora com chuva ou vento, nem que chovesse canivete viria. Se minha mãe fosse viva completariam 100 anos neste 16 de outubro. No dia 14 de agosto foi o centenário de nascimento do meu pai.

Gosto de escrever sobre Morretes. Por diversas vezes chamam-me de saudosista, talvez por um menosprezo pela história, ou talvez por temor pelo tempo que passa. Falando dos que nos antecederam estaremos falando de nós mesmo, da nossa matéria-prima social. Somos seres que vivem uma história.

Quem vive em Morretes vê a sua história passar sem se dar conta dela, a não ser quando levam alguém à sua última morada. Eric tem me avisado: hoje fomos enterrar... enterrar alguém que viveu e teve uma história.

Morretes é o meu território. Esta gente que viveu comigo e que vive quando retorno para lá e o mundo físico em que vivemos constrói na memora de cada um uma imagem. Quantas vezes ao olhar o céu de São Paulo, ou o sol encoberto pelas nuvens, eu me pego “vendo” Morretes. E me sinto em Morretes quando vou a Boracéia ao olhar para as montanhas encobertas pelas nuvens e logo depois despidas delas, como se fossem as serras às eu me acostumei a ver desde pequeno.

Vou ao cemitério e lá estão as tumbas que guardam os restos mortais do meu pai e da minha mãe, de nonno e de nonna, do meu avô e da minha avó, dos meus tios e tias, dos meus tios avós e minhas tinhas avós. Vejo neles a minha ascendência, a minha história.

Nos meus retornos por vezes vejo este território como se fossem capítulos da minha história, cada capítulo um pouco diferente do anterior. Vejo pessoas que não conheço e que sou um desconhecido delas.

Certa vez eu comentei num dos meus textos a “queixa” de Adaulino: onde está a minha Morretes? A Morretes dele guri, que foi a minha Morretes. A nossa Morretes está na história. De quando ir a Curitiba era uma viagem e ir a São Paulo que precisava se despedir de todos os parentes e amigos.

Minha irmã comentou, nesta minha chegada, de “como é bom viver em Morretes”: as pessoas organizam excursões, fazem viagens turísticas de navio e em outros lugares turísticos. Organizam-em grupos de primeira, segunda e terceira idades e logo de quarta idade.

E aqui estou. Mas terei que voltar logo, pois a vida fez-me construir uma vida em outras plagas. As obrigações me chamam. Eu acho que me tornei um morretense “paranalista” uma mistura de paranaense e paulista, apesar do meu ¼ de vida paranaense e ¾ de vida paulista, mas foi em Morretes que eu vi o mundo pela primeira vez. 

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Por que e como me tornei um antropólogo




Este texto foi publicado em http://mcherobim.multiply.com/journal/item/6/6 em 29 de julho de 2007 às 14:39.



Há quase duas décadas precisei escrever um memorial e nele mostrar porque e como segui a carreira na Antropologia. Claro que alinhei uma série de fatos, verdadeiros, é claro, mas talvez não suficientes para dar uma guinada na vida em direção da Antropologia. Mas existiu um fato concreto, real, que me fez pensar: é isto que eu vou ser.

 Estas lembranças voltaram à minha memória porque no início de agosto fará dois anos que o meu amigo Almir faleceu (este texto foi escrito em julho de 2007), Ele foi o autor de uma interferência nos meus projetos de vida, em me tornar um professor (como comento lá no final).
 Eu era sargento radiotelegrafista da FAB, com um ano na graduação militar, nos meus 22 anos, trabalhava numa estação de aerovias em Xavantina, a atual Nova Xavantina, Mato Grosso. Faz tempo!
 Cheguei lá no dia em que os revoltosos de Aragarças fugiram para a Bolívia. As tropas do Exército acabaram com o estoque de comida. Com a saída do Exército todos os vôos ficaram proibidos na região e como era época das chuvas, ficamos isolados. A nossa alimentação passou a se constituir de arroz com abóbora num dia, abóbora com arroz no outro e assim, intercalando o cardápio, passamos cerca de dois meses.
 Quando os aviões do Correio Aéreo Nacional voltaram a voar na sua linha Rio de Janeiro – Santarém, pudemos sentir como era bom adoçar o café e salgar a comida! Abóbora? ...levei uns 10 anos sem comer.
 Num dos primeiros vôos do CAN (Correio Aéreo Nacional) havia entre os passageiros um homem, de uns trinta anos, alto, loiro, cabelo cortado curtinho, falando inglês. Perguntei para um sargento da tripulação:
  - quem é este cara?
 - um antropólogo.
 - Antropólogo? O que é isto? O que faz? Quis saber.
 - sei lá!  Ele vai numa aldeia de índios, faz perguntas, anota, e depois volta para a terra dele e escreve um livro.
 Bah! Pensei com os meus botões. É isto! Vou estudar antropologia, venho para cá, fico numa boa, não vou ter tenente, capitão, coronel, brigadeiro para me torrarem a paciência com as suas ordens... eu me dou bem com os Villas Boas, foram amigos do Lourival (um primo do meu avô, oficial do Exército e que participou da Expedição Roncador Xingu)... Vou ser antropólogo...
 Quando falei dos meus planos para alguns  amigos eles me perguntavam o que era antropologia, o que fazia...  ficavam sem respostas, pois eu também não sabia. Se dissesse que era para voltar para o Xingu iriam me chamar de doido.
 Como andei atropelando os regulamentos militares em Xavantina transferiram-me para Curitiba para trabalhar com dois suboficiais “disciplinadores”. Por minha sorte um deles foi aluno da minha mãe, em Morretes.
 E aí começou a minha busca para saber onde poderia estudar Antropologia. Indicaram-me o curso de História Natural. Mas era Antropologia Física. Até então esta especialização não me dizia nada. Quando descobri o que era Antropologia Física, já aluno do curso de História Natural, senti que não era aquilo que me levaria para o Xingu. Indicaram-me, então, um curso da Universidade Católica, Sociologia, Política e Administração Pública.
 Por alguma coisa que eu talvez tenha feito, a esquerda começou a me chamar de “gorila” e a direita, após o golpe achavam que eu era comunista. Por sorte não tive tempo de ter crise de identidade política e o bom senso me indicou uma transferência rápida. Voltei para São Paulo. Terminei o meu curso na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e em seguida entrei para o Pós de Antropologia na Universidade de São Paulo.
 Sentia que o meu Projeto estava tomando forma. E é aí que Almir entra na jogada.
 Almir era aluno de um dos cursos que eu fazia e era diretor do Centro de Ciências Humanas da OMEC, agora Universidade de Mogi das Cruzes. Convidou-me para lecionar e eu aceitei na hora, pois até então eu consertava TV para complementar o meu ganho na FAB. As instituições de ensino superior privadas, no final da década de sessenta, início da de setenta pagavam relativamente bem e eu me enchi de aulas. Pude assim me livrar de todos os compromissos financeiros, comprar um carro e uma casa. E ir ao Xingu. Mas a FAB começou me atrapalhar. O final da década de sessenta e início de década setenta, com repressão política, muitos sargentos especialistas sendo presos, o entusiasmo de ser "fabiano" foi esfriando. Deixou de ser uma carreira, transformando-se num simples emprego. 

Mas ainda na FAB retornei ao Xingu. Ao passar por Xavantina, a última escala para chegar ao Xingu. Ainda ao descer do avião lembrei do diálogo de onze anos passados. Um ano depois deixei a FAB.
Os índios Guarani do litoral paulista "roubaram-me" do Xingu, pois naquele momento já desenvolvia um projeto de pesquisas etnológicas entre os índios Guarani. 

Este foi o início de uma vida de muitas décadas.

Em tempo: no final do expediente das organizações militares é lido ("cantado") um Boletim (Boletim Ordinário), uma espécie de Diário Oficial. Num deles foi publicado que todos os militares que tivessem cursos civis, em qualquer nível, deveriam registrar estes cursos. E eu havia feito o curso de Sociologia. Informei e "cantou em Boletim".

Dois ou três dias depois eu me encontrei com um oficial e tivemos o seguinte diálogo:
- Cherobim, você fez o curso de socialismo?
- Não, fiz o curso de Sociologia. Se saiu errado vou corrigir.
- É que para mim socialismo e sociologia é tudo a mesma coisa.
- Mesma coisa, como?
- São todos subversivos. 
- Subversivos? 
- Claro, estão sendo cassados.
- Bem, se este for o parâmetro, muito mais militares foram cassados que sociólogos. Neste caso as escolas militares são subversivas. O Senhor não acha?

E assim encerrou a nossa conversa.

Este diálogo mostra bem como eram os ânimos no período pós AI5.


segunda-feira, 2 de agosto de 2010

O mboi-tatá em Bateias




A minha mãe teve um AVC em 1953. Foi o ano em que terminei o ginásio. Em 1954 fui estudar em Curitiba e cursei o primeiro no do então curso científico um dos cursos secundários que havia. Com a doença da minha mãe, o pai teve que parar de viajar. Ele era caminhoneiro. Mas o caminhão era o seu meio de vida e colocou um motorista. Terminei o primeiro ano e retornei para trabalhar junto com o meu pai; podia viajar dentro do Estado do Paraná com uma carteira de habilitação provisória do o Departamento de Trânsito fornecia para  quem tivesse 17 anos. Viajei durante todo o ano de 1955 e em 1956 ingressei na Aeronáutica para fazer o serviço militar.
Todas as estradas eram de terra  e o governador que entrou na época, intitulou-se o construtor de estradas, principalmente ligando o Norte do Paraná com o sul. Muitos caminhoneiros foram trabalhar no transporte de terra onde as estradas estavam sendo construídas. As empresas também terceirizavam máquinas, tratores, etc.
Conversei com o meu pai para que logo que completasse o serviço militar venderia o caminhão e adquiriria um trator de esteira para trabalhar na aberturas de estradas. Logo após terminar o período de instrução militar, de “ter passado pronto” e “jurado bandeira” houve inscrições para cursos de cabe e dentre eles um de sistemas hidráulicos. Encaixava nos meus interesses.
O curso seria realizado do Parque de Aeronáutica de São Paulo e ficamos à espera de um avião que nos traria para cá. Num final de semana resolvei ir a Morretes e esta viagem coincidiu com a chegada do avião. E eu perdi a viagem e o curso.
Como havia vagas num curso de cabos radiotelegrafistas auxiliares, fiz este curso e no final também me trouxe para São Paulo. Mas esta é outra história para outro momento.
O Paraná atual é bem diferente do Paraná que deixei há 53 anos. Não só o Paraná. O mundo mudou.
O caminhão do meu pai era um caminhão tanque. Transportávamos combustível entre Paranaguá e Londrina e algumas viagens esporádicas para o Oeste do Paraná, Santa Catarina e “entregas” no Norte a partir de Londrina.
O caminho “natural” para o Norte era pela Estrada do Cerne. Saía de Curitiba por Santa Felicidade, Bateias e mais 104 km de morros. Eram os Morros, como os motoristas tratavam esta estrada.
Outro dia tentei reconstruir esta viagem através do Google Earth. Não consegui. Queria contar a história do boi-tatá que vi num pasto ao longo do restaurante que parávamos ao anoitecer. A “entrada” era uma minestrone acompanhada com um bom naco de polenta mergulhada. Feijão chumbinho, arroz, (mais) polenta e frango completavam o mangiare.
Numa tarde, no lusco-fusco da noite, entrou alguém apavorado, gritando para se esconder que havia mboi-tatá no pasto. Corri em sentido contrário de todo mundo para ver o fenômeno. Consegui ver, mas muito pouco, porque me arrastaram para dentro. Chamaram-me de louco e não havia meio de acreditarem nas aulas de ciências do Dr. Albino, professor do ginásio em Morretes.
Bem, contei a história. A segunda parte, de descrever a viagem meio séculos depois, ficará para mais tarde quando passar por lá de máquina fotográfica em punho, GPS e outras “brincadeiras” que as novas tecnologias colocaram à nossa disposição.

domingo, 1 de agosto de 2010

Ler e escrever. Para início de conversa


Eu me inscrevi no Multiply há certo tempo[1]; não me lembro se convidado por alguém ou "cai" por aqui por um dos tantos caminhos que navegação da Internet nos oferece. De uns tempos para cá comecei a receber convite e informação de minha amiga Itamara.
Eu tenho dois prazeres na vida. Na verdade, tenho muitos. Mas aqui eu me restringirei a dois: ler e escrever. Não é nesta ordem, e até pode ser, pois eu não sei qual seria a ordem de preferência. Da minha preferência.
Ler é cômodo. Paramos e continuamos quando bem entendemos. Lemos diferentemente de acordo com o assunto. Por vezes começamos da primeira página e vamos até o final; outras vezes, como nos livros técnicos, vamos lendo aos pedaços como se fossem manuais; algumas vezes transformamos o livro numa obra de referência, pois a nossa leitura foi aquela chamada "leitura transversal". Eu acho que são estes livros que nos marcam mais presença, sem nunca os ler como mandam os bons modos. Mas existem aqueles que nunca terminamos. Porque para nós são os melhores; terminar uma leitura de um livro é como colocá-los na (nossa) história, no passado; aqueles que nunca terminamos é porque queremos que estejam sempre no presente.
O final de uma leitura é o momento formal de se colocar o livro na nossa história. Mesmo que não se confesse, ele vai partilhar da poeira das prateleiras de nossas estantes. Provoca um complexo de culpa; para aliviar esta culpa, por vezes, vou lá folheio, ou uma olhada em alguns tópicos, fecho e devolvo à prateleira. Eu faço isto com as teses, dissertações e trabalhos de término de curso que orientei ou examinei. Estes trabalhos têm um problema: o da leitura compulsória, por dever de ofício. Mas ao fazer isto, lembro de pessoas. Com alguns mantenho contato e outros sumiram. Por onde andarão? Talvez - ou na certeza - mergulhados nas suas tantas obrigações. Ali estão anotadas algumas observações, importantes no momento da argüição que o tempo se obriga em diluir a sua importância.
A Internet, com a possibilidade de se comunicar através de e-mails, site de relacionamentos do tipo do orkut, gazzag e outros, messengers, etc., e com o nosso nome nos sites de busca, fazem com que sejamos encontrados. Estes encontros vêm com algumas lembranças: lembra-se do que você falou? Puxa, aquela sua observação... E por ai vai... Temos que reconhecer que o professor é uma pessoa pública.
Aquela leitura chata, empanturrada  de expressões típicas de um snobismo acadêmico, traz os seus bons frutos e médio ou longo prazo, não pelo que está escrito, mas pelas pessoas que estão por trás daquilo que lemos.
E escrever? Quando entrei no pós o meu orientador me advertiu: você escreve em italiano, mas com palavras portuguesas. Eu? O que é isto? retrucava em pensamento, não existe brasileiro mais legítimo que eu. Até quando eu o acompanhei a Pedrinhas, um núcleo de colonização italiana, hoje município do oeste paulista. Ele não me levou para um confronto étnico, mas porque tinha idéia que eu continuasse o trabalho, e que isto fosse feito por um italiano. Na verdade um "italiano", ou  alguém italianado.
Esta idéia de "autenticidade brasileira" foi para o brejo. Nunca havia me sentido um italiano e me via não sendo mais o brasileiro que imaginava ser. Que diabo eu sou? Como escrevo "em italiano" se não sou italiano, mas como uso a estrutura italiana se sou brasileiro? Mandei às favas esta questão de identidade e resolvi partir do que eu era. Mas era o que, se nem eu sabia? Ah, sou isto! O negócio é soltar no "ponto morto" (posteriormente, "na banguela") e ver onde vai parar.
Por que eu era italianado? Eu nasci em Morretes, onde foi criada a primeira colônia de italianos do Paraná e eu nasci e me criei em um dos seus núcleos, o do Central. Revendo o passado, havia uma coesão étnica, aproximando-os territorialmente, apesar de os núcleos estarem separados no espaço físico, na prática religiosa, nos interesses políticos, no futebol, etc.  Portanto, não havia jeito de ser diferente.
Naquele momento eu tinha duas coisas pela frente, essenciais para terminar o meu pós graduação: continuar as minhas pesquisas juntos aos guarani[2] () e aprender a escrever, é claro.
Quando fui aluno da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo adquiri um anuário antigo da escola. Numa de suas partes ensinava a escrever. E lá havia uma orientação: a linguagem cientifica deve ser redigida em frases curtas e na ordem direta. Eureka! É isto, pensei. E comecei a colocar em prática.  Partir daí eu me tornei um leitor de manuais de redação. Numa das leituras havia um conselho: respeite o leitor: use palavras conhecidas para evitar  que o leitor leia o seu texto com um dicionário na mão.
A erudição com vocabulário rebuscado é uma forma de usar o segredo como forma de poder; a erudição desejada é aquela que torna inteligível ao leitor comum pensamentos muito elaborados. De transmitir ao leitor emoções através da palavra escrita. Este é um treinamento sem fim, mas que satisfaz a quem escreve.
Portanto, eu gosto de escrever, ou melhor, de treinar a escrever contando e comentando coisas. É o que pretendo fazer aqui. Mas somente poderei fazer isto com o auxílio dos meus eventuais leitores.



[1] Este texto também está publicado em http://mcherobim.multiply.com/journal/item/1/1 . Estou trazendo alguns textos de lá para cá.
[2] Não errei a concordância em número. Existe uma norma de grafia de nomes indígenas, segundo a qual eles são invariáveis em gênero e em número.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Patudo

Patudo era o xodó de tio Almir, irmão da minha mãe. Era um potro heterodoxo; bom de montaria, um trote macio, mas também era um cavalo de tração. Puxava uma zorra cheia de cachos de banana – claro que morro abaixo – e não negava tempo ruim na carroça. A sua parelha tinha que ouvir um estalo de chicote para não deixar o Patudo puxar sozinho a carroça.

Tio Almir era o meu padrinho de crisma. Era ele que me levava e trazia do sítio do meu avô. Algumas vezes de bicicleta, outras vezes de carroça, mas o bom mesmo era montado no Patudo.

Patudo e a bicicleta não eram comuns. A sela era das melhores, compradas nas melhores selarias de Curitiba. Os pelegos de coro de carneiro, coloridos, os arreios com enfeites prateados, o culote e as perneiras tornavam o centro de atração das gurias por onde ele passava.

Patudo me fazia sonhar com uma montaria, um belo pelego, um poncho e um chapéu de aba larga. Meu pai tinha culpa no cartório, principalmente quando falava de eguinha de nonno, campeã da raias e de trote macio quando puxava a charrete. Era ela que nonno colocava na charrete para levar mamãe para as suas aulas na escola e foi ela que trouxe Dona Margarida, a parteira, quando nasci. “Porco Dio, guardar o cavalo onde, no seu quarto?” foi a resposta que recebi. Mas ganhei uma bicicleta. Foi a minha montaria. Levei um susto quando ele me mostrou a bicicleta na carroceria do caminhão, ao chegar de Curitiba.

A heterodoxia de Patudo provocava algumas surpresas. Claro que os meus tios Almir e Rubico  (Rubens) já conheciam as manias dele, mas muitas vezes fugia do controle. “Chegou a carroça dos Serôas...” comentava-se quando chegavam na cidade, tantas foram as vezes que a carroça disparou pela cidade. Na verdade era Patudo que iniciava a disparada. Era a segunda maior distração em Morretes. A primeira era quando fugia bois na cidade.

Era um misto de alegria (movimentava a cidade) e pavor (dois cavalos em disparada e descontrolados, puxando uma carroça com aros de metal sobre os paralepípedos que recentemente haviam caçado as ruas de Morretes). A alegria era a movimentação, um "diferente comum", como era o caso dos bois que fugiam.

Até que um dia fui passageiro da carroça em disparada.

Meu avô e meus tios resolveram fazer carvão. O sítio, no Pitinga, era rico em matéria-prima e o dinheiro do carvão financiava a abertura das roças de banana.

O meu avô era engenhoso; leu revistas, livros e não sei mais o quê, e descobriu projetos de forno de carvão. Naquele tempo não havia Internet e muito menos o Google. Nem TV. O primeiro rádio que chegou ao Pitinga foi montado por tio Almir, tarefa de um curso feito por correspondência pela National School. Muito chique! Era uma escola por correspondência na Califórnia, EUA. O curso era em português.

Como não havia luz no sítio, ele ia soldar em casa, na cidade. Mas a luz, fornecida pelo engenho da cachaça do Central era tão fraca que precisava ser auxiliada por um lampião. Não esquentava o ferro. Meu pai arrumou um maçarico e um ferro de solda pequeno que era utilizado para soldar radiador de carro.

Com a orientação de papai, vovô montou um dínamo (como se chamavam os alernadores dos carros) para carregar a bateria para alimentar o rádio. Toda esta peripécia permitia que a minha avó e o meu avô acompanhassem as aventuras e desventuras de Albetinho Limonta, Mãe Dolores, etc., da novela O Direito de Nascer pela rádio Nacional do Rio de Janeiro.

Bem, depois de estudar  projetos de fornos de carvão, vovô desenhou o seu e chamou Zebedeu,  o Bedeu, casado com Maria da Luz. Bedeu era lavrador, pedreiro e carpinteiro. Construía casas de madeira e de tijolos.

O forno era redondo e tinha uns 15 metros de diâmetro. Uma fornada fornecia cerca de 100 sacas de carvão e demora uns 15 dias para ficar pronto. Era um carvão muito bom e havia uma boa freguesia. Seu Lourencinho, dono de uma ferraria, era um deles.

Meus tios não gostavam que eu andasse com eles quando traziam carvão porque a poeira sujava muito. Para se ter uma idéia, em 1942 o meu pai foi buscar dois caminhões no Rio de Janeiro. Era época da guerra e a gasolina era racionada e os carros eram movidos a gasogênio. A viagem Morretes - Rio de Janeiro – Morretes demorou uns três meses. Ele contava que na volta hospedou-se num hotel em São Paulo. Tomou um banho e saiu com o outro motorista para fazer uma refeição. Ao retornar o porteiro não queria dar as chaves dos quartos, pois ali estavam hospedados “dois senhores de cor”. Não, eram eles antes de tomar banho.

Eu fui com eles no seu Lourencinho, pois era avô de Valdinho, meu amigo de infância. Era hora do almoço. Entregue o carvão subi na carroça com os meus tios e saíram em direção de casa para almoçar. Patudo assustou-se com alguma coisa  - certa vez disseram-me aos meus tios que ele poderia ser vidente e era assustado por algum espírito – e começou  a correr.

Na pracinha do paredão virou à esquerda, passou defronte a telefônica e na esquina da Farmácia do Roberto França entrou na rua XV quase em duas rodas. Os dois cavalos bem ferrados e o aro de metal das rodas da carroça faziam um estardalhaço nos paralepípedos da rua XV. Tio Almir, agarrado nas rédeas gritando Óóóóóó, pára Patudo!!!... E Patudo mais corria. E o pessoal nas calçadas gritava “cuidado que é a carroça do Serôas que voltou a disparar!” Seguiu toda a rua XV. Na esquina do Seu Salomão  viu à direita e na esquina seguinte, defronte a casa do Bôrtolo virou à direita e pegou a rua da Prefeitura, virou na rua das Oficinas, voltou a entrar na rua XV,  passou pela pracinha do paredão e novamente pela ferraria do seu Lourencinho, costeou o rio, entrou na rua do hotel, defronte à Igreja Matriz, passou por trás do grupo, pela rua do Centro Espírita e os cavalos já estavam suando. Tio Almir rouco de tanto gritar e tio Rubico ficou no meio do caminho. E a cidade em polvorosa. Fazia tempo que não fugia boi na descarga do vagão de gado no início da reta do Porto.

O espetáculo era como a correria das velhas diligências e carroções dos seriados do Velho Oeste, que passavam no cinema do Nhozinho.

Minha mãe viu tio Rubico, todo sujo de carvão, perguntou por mim.
- Está com o Mimo (apelido de tio Almir) na carroça!
- Ele está bem, não está machucado?
- Não sei, acho que não. Nem sei onde estão...

Quando a carroça começou a correr eu caí no assoalho dela, misturado com o resto de carvão, e não conseguia levantar com os saltos que a carroça dava. Quando os cavalos acalmaram pude sentar no banco, ao lado de tio Almir e voltar para casa.

Além da sujeira pedi um pé da “loirinha” (uma sandália de sola de pneu, lançada por Aramis Zanardi e difundida pelo Ewaldo Zilli). E por uma semana saía carvão dos meus ouvidos e das minhas narinas.

domingo, 31 de janeiro de 2010

Tentando a recomeçar a escrever

Não sei se é preguiça ou falta de tempo. Ou muito trabalho. Pressão alta e remédios para entrar nos conformes; glicemia alta e remédios para entrar nos conformes. Tirar um pedaço e colocar um enxerto para ver se dará bons frutos.

E parar de trabalhar é como cabeça d’água no Nhundiaquara: se não caprichar no varejão, o bote descerá às cambalhotas.

Em 2009 a família perdeu Luciana. Que perda! A perda foi muito maior que a perda da família; também foi uma perda para o teatro do Paraná.

Também perdi Odith. Minha amiga de infância e minha fonte de informações sobre Morretes e a sua gente.
E, além disto, o Multiply não aceita os meus caracteres acentuados. Mas se der um clique no título irá à página e lerá o artigo direitinho, como foi escrito.
Quem quiser palpitar para me ajudar dê uma chegadinha em http://desterritorializacao.blogspot.com/2010/01/nos-e-o-nosso-avatar.html. Comecei a falar do avatar para poder caminhar no mundo da virtualidade pelo olhar da desterritoriazação.
Esta história do avatar vai me levar a discutir a questão do corpo. Outro dia uma minha amiga, artista plástica, falou-me algo que me fez matutar: as estátuas de mulheres gregas eram formas masculinas de bunda e peitos. A mulher seria uma projeção do homem. Será que tem relação com aquela história de Eva que nasceu de uma costela do homem? Ou que a mulher seria um homem invertido?

Esta aproximação do mundo cristão com a Grécia antiga vai muito além das escolas de pensamentos que herdamos dos gregos; os “construtores” do cristianismo eram judeus Helênicos. Já li alhures que o mito de Adão e de Eva foi inspirado no mito da Caixa de Pandora.
Eu seu empacar pelo que me desencalhem.
Para que o ano passe mais rápido voltarei aos meus trabalhos de campo entre os guaranis do litoral. Tenho um projeto que está parado.
Esta é a minha programação para este ano.
Um feliz 2010 a todos.

Meus "dante Causa" paternos

Se Luigia Doff Sotta Cherobim fosse viva, ontem (30/01) teria completado 133 anos. Nasceu em Imer, Província de Trento, Itália, e faleceu em Morretes.

Se também fosse vivo, Fiorello Guillermo Cherobim teria completado 137 anos no dia 10 de janeiro.

São os meus dante causa do lado paterno. Tiveram cinco filhos, netos, bisnetos, trinetos e entre ascendentes diretos e afins há uma descendência que passa da centena e lhes permite a eternidade.

Foi um sábado de saudades.