Tio Jango sempre falou muito alto. Quando eu e Carlito
viajávamos com o caminhão de papai íamos para Londrina via Palmeira, ao invés
de irmos pela Estrada do Cerne. Passávamos pela fábrica cumprimentar tio Chico
e os primos. Algumas vezes escutávamos tio Jango falar, até da sua casa, a primeira
casa. Elói brincava: “Jango está cochichando!”. Se ele cochichava com altos
decibéis, imaginem falando alto.
Nonno gerenciava o engenho do Central e tio Jango assumiu
este trabalho após o falecimento de Nonno. E lá havia uma locomove que fornecia
luz para Morretes. A luz era tão fraca que muitas vezes era preciso acender um
palito de fósforo para ver se a lâmpada estava acesa.
A locomove era uma caldeira que girava uma polia que fazia
girar o gerador de eletricidade. Era barulhenta e tio Jango todas as noites ia
jogar “três sete”, ou “21”, com o guardião do engenho que também cuidava do bom
funcionamento da locomove. Precisavam conversar aos gritos. Esse era o motivo,
diziam os irmãos, de ele falar tão alto.
O “três sete” era o jogo preferido dos amigos no Central.
Tio Juca mantinha um consultório em Morretes, onde atendia nas segundas e
terças feiras. “Descia” pelo domingo pela manhã pelo expresso ia para nossa casa
para almoçar e em seguida, com papai, iam para o Central. Lá se reuniam com tio
Jango, tio Tonico que de inicio morava num dos sobrados, ao lado do sobrado em
que morava tia Maria Sotta Malucelli, irmão de Nonna (mais tarde ele construiu
a casa na reta do Porto de Cima). Também eram parceiros os irmãos Tonico e
Jango Valério. O outro parceiro certo era o Sebastião Malucelli, filho de tia
Maria. Depois de Sebastião construir uma casa e se mudar para a Vila Santo Antonio,
Giocondo Malucelli, filho de tia Felícia e tio Joanim, passou a ocupar a casa e
assumiu a vaga deixada pelo Sebastião.
Havia um paiol ao lado da casa. E era onde estava a oficina
de selaria de tio Jango. Dos filhos de tio Jango, pelo que eu me lembro, foi
Beto que herdou a habilidade de seleiro. De fazer peças de arreio e também, de consertar.
Enquanto Carlito passou a se interessar por caminhões, Beto ase interessava por
carroças. Lembro-me da sua carroça de quatro animais, dois cavalos na frente e
dois burros atrás. O bom carroceiro tinha que ter um bom chicote para estalar
sobre os cavalos, que obedeciam aos estalos... e sem acertar nos cavalos. No final do
chicote, de couro, havia um pedaço de corda para dar o tom do estalo. Como morávamos
no início da estrada do Central, sabíamos quando o Beto passava por lá.
Relembrando os estalos dos chicotes, quando trabalhei com o caminhão
de papai fiz um apito e coloquei na saída de ar do freio. Deu trabalho em
acertar, com um lima, um silvo que “fosse o meu”. Os primeiros motoristas, da
geração anterior à minha, antes foram carroceiros.
Enquanto os homens jogavam “três sete” as mulheres se
reuniam na estrebaria. Nonna era uma verdadeira mamma. As suas noras eram como
se fossem filhas e os seus netos como se fossem filhos. Quando a minha mãe
adoeceu, nonna assumiu a casa e “nos assumiu”. A estrebaria e o galinheiro da
casa de tio Jango eram, na verdade, de nonna. Também “era dela”, o galinheiro que
ela fez papai construir em casa. Todas as manhãs ela ia ao galinheiro (ou
quando chegava em casa) fazer um “fio terra” nas galinhas para ver se tinha ovo.
Se tivesse era separada para não chocar, ou para chocar, se houvesse interesse.
A estrebaria ia além do local de acolher as vacas para “tirar
leite”. Era onde estava o tacho que era usado para fazer sabão. A potassa era
guardada numas tábuas próximas ao telheiro. Certa vez a potassa caiu sobre a
cabeça de Lolinha, esposa de Giocondo.
Ela, recém chegada da cidade, ao invés de tirar a potassa “ao seco”, lavou a
cabeça. A reação da potassa com a água queimou o coro cabeludo e a sua recuperação
e volta dos cabelos foi muito demorada.
Nonna era um tanto estouvada. Era canhota. O canhoto tende a
ser “estouvado” porque vive um mundo destro. Trombava com pés de cama e de
mesa, tropeçava e isto a deixava um pouco “desligada”. O Padre de Morretes
rezava a “missa das almas” às quatro da manhã das segundas feiras. Nonna era
frequente nesta missa. Costumava vir para casa no domingo a tarde, mas algumas
vezes saída do Central por volta das três da manhã para assistir a missa. Certa
vez ela encontrou um homem quando passava pelo cemitério e vieram conversando
até na entrada da cidade. Na volta da missa comentou intrigada e zangada da
falta de educação do homem que sumiu no meio da conversa sem se despedir.
Minhas irmãs ficaram arrepiadas, pois achavam que o homem era um fantasma de
algum morto do cemitério.
A missa das almas era comum e frequentava geralmente por
mulheres de meia idade para cima. Na Igreja do Bom Jesus, em Curitiba. Tia
Angelita acordava-me de madrugada para acompanhá-la à missa. Numa das vezes a
Igreja estava fechada e no portão havia uma placa informando que a missa,
naquele dia, seria rezada na capela do Colégio São José, do outro lado da
Praça. A pessoa que nos recebeu apontou para o final do corredor e disse: a
capela fica no final da aquela escada. Só que a capela fica no penúltimo lance
da escada; no último lance era o dormitório de um pensionato de moças. As
moças, naquele tempo eram muito pudicas e ainda bem que eu estava atrás da
minha tia.
Propositalmente deixei este texto sem começo, meio e fim; as
recordações são aleatórias e sem começo, meio e fim. Como é a nossa memória.